SEGREDOS DO PASSADO E KARMA SE UNEM NAS MONTANHAS DA TAILÂNDIA
A mediunidade é considerada uma benção para alguns, e para outros uma maldição. Há também quem não acredite, sendo mais céticos do que São Tomé. Nesse emaranhado que mais se aproxima dos mais devotos, o Japão, assim como a assustadora e a autêntica Tailândia entram como bons exemplos. Se o primeiro já foi conhecido pelas franquias rancorosas como O Grito (2020), e lendas como Hasshaku-sama e a Mansão Himuro, o segundo tem um cinema de horror sobrenatural de alto impacto. Primeiro com Espíritos: A Morte Está ao Seu Lado, de 2004 e agora com A Médium. De caráter intimista, temos uma viagem para as montanhas de Isan, na Tailândia, que envolve não somente conflitos internos como uma passeio pelos ritos animistas e budistas. A questão é que o espectador deve estar preparado para essa viagem pelo Prime Vídeo e que no Brasil foi lançado pela Paris Filmes.
RESPEITOSO COM AS CRENÇAS LOCAIS, A MÉDIUM É UMA CONSTRUÇÃO:
Primeiramente, A Médium, filme de 2021 dirigido por Banjong Pisanthanakun, um dos criadores de Shutter, o já mencionado Espíritos: A Morte Está ao Seu Lado é um exemplo fundamental do horror tailandês. Entretanto, o que se destaca na película é a profundidade e o cuidado do longa em apresentar as tradições espirituais e as crenças daquela região da Tailândia. E de maneira respeitosa. Para isso, é usado o estilo de falso documentário, já conhecido e vivenciado em A Bruxa de Blair (1999). Isso cria uma imersão coesa quando o espectador acaba seguindo os passos de uma equipe de documentaristas que desbrava o modo de viver dos xamãs da Tailândia e se encontram com Nim. Xamã de uma entidade local chamada Bayan, eles relatam não somente aspectos cotidianos da vida, como a relação desastrosa com outros membros de sua família.

O uso desse vínculo familiar é o suficiente para imergir em uma cultura muito diferente dos padrões ocidentais. Mesmo que ocorram em alguns aspectos semelhanças com o horror da possessão ocidental. Aqui, o Karma, conceito das religiões dármicas, especialmente do budismo Theravada é elemento importante. Diferente de uma abertura de uma caixa com um Dybbuk, ou a conversa com os espíritos em um Tabuleiro de Ouija como em O Exorcista (1973), os atos de sangue de seus antepassados podem emergir em vingança dos espíritos no futuro. É essa forma de ver o mundo espiritual tão interessante e diferente em A Médium. Seu roteiro, escrito tanto pelo diretor quanto por Na Hong-jin, se desenrola lentamente. O filme não tem pressa alguma em criar momentos de terror. Pelo menos em seus dois primeiros atos. Aqui, temos a construção correta para o vínculo com os personagens.
BONS ASPECTOS TÉCNICOS TRAZEM A IMERSÃO DO ESPECTADOR:
Essa falta de pressa é contextualizada pelos planos e pela fotografia de Naruphol Chokanapitak. Sendo um outro aspecto que impressiona em A Médium. Utilizando uma paleta de cores sombrias e uma iluminação natural, as montanhas e as tomadas aéreas criam uma espécie de beleza e encanto que guardam muito mais do que simplesmente lendas, tal como Quando a Morte Sussurra (2023). Junto a essas tomadas, temos as estátuas, os templos e as celebrações locais, e a sonoplastia também tem seu peso. Existem filmes que sabem utilizar esse conceito como ninguém, como Marcas da Maldição (2022). Porém, A Médium, embora não quebre a roda, sabe como mesclar sons do ambiente e o silêncio. Tudo isso cria uma atmosfera de suspense e horror em suas cenas. Essa tensão cresce com o decorrer de seus 130 minutos de duração.

Mesmo sendo considerado um filme de horror longo, A Médium consegue manter suas sequências construtivas através da direção eficiente de Banjong Pisanthanakun. O uso da estética de falso documentário, assim como uma espécie de normalidade local criam uma sensação de que não se trata de um filme. As atuações, por outro lado, podem ser divididas como uma adaga de dois gumes. Se por um lado, temos a serenidade de Sawanee Utoomma, como Nim. Xamã e guia espiritual da entidade Bayan, ela tem uma presença um tanto etérea, como você esperaria de uma pessoa focada no mundo espiritual. Mas tão terrena quanto qualquer ser humano, e com sérios problemas familiares. Na outra ponta, Narilya Gulmongkolpech, no papel de Mink. E aqui, embora a jovem apresenta carisma, seus trejeitos após um ritual que dá terrivelmente errado e ela se torna uma vítima de possessão ficam de certa forma caricatos.
UM TERCEIRO ATO DISCREPANTE, MAS QUE NO LIMIAR DOS MUNDOS, MARCA:
A construção de A Médium é elogiada e mesmo que se mostre de maneira lenta, na verdade tem um adjetivo melhor; cuidadosa. Isso diferencia grandemente esse longa de outras produções de horror, que simplesmente jogam o espírito impuro no meio da tela, como O Exorcista do Papa (2023). Porém, o filme se torna disruptivo, de maneira completa, com o seu terceiro ato, onde temos a possessão e a tentativa de retirada dos espíritos vingativos. Que realmente são mais vingativos que uma Onryo da Mitologia Japonesa. Há um atropelo dessa construção com cenas de horror bem tradicionais tanto na Tailândia quanto nos padrões orientais. O terceiro ato é um desfecho consistente, mas com ressalvas. Entretanto, é um ponto fora da curva em A Médium por apresentar tudo aquilo que não foi visto durante todos os arcos anteriores.

Então, depois de muitas orações, A Médium é um filme para os amantes do horror oriental. É o primeiro entre os pares no sentido de criar uma atmosfera de cuidado com a cultura daquela região da Tailândia. Há um bom uso na direção e na construção do horror em formato de documentário. Assim como sua construção correta, criando um terror além de sustos baratos, os jump scares como os vistos em Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio (2021). A sonoplastia e a fotografia também passam essa sensação de imersão, que acaba sendo retirada em alguns degraus com uma atuação que tem alguns deslizes, assim como o seu terceiro ato. Mesmo assim, a mente de Banjong Pisanthanakun criou sem dúvida mais um marco do horror tailandês e de listas de horror não só da Tailândia como também da Ásia em geral.
Números
A Médium (2021)
A Médium é um filme para os amantes do horror oriental. Com uma atmosfera de cuidado com a cultura daquela região da Tailândia e uma boa execução em termos técnicos e até de roteiro, o longa só acaba pecando em seu terceiro ato. Mas a construção é interessante.
PRÓS
- A Médium consegue trazer um olhar cuidadoso e que parece real das tradições do Nordeste da Tailândia e com imersão.
- Mesmo as cenas mais rurais, há uma aura de mistério e crenças que desconfortam a fascinam o espectador.
- O roteiro, por um milagre de Bayan, é bem construído em seus primeiros atos. E a lentidão tem serventia.
- Direção e sonoplastia coesa nessa construção de terror mais intimista, e não completamente desbravador.
- Ser um falso documentário aumenta a credibilidade do que é passado, e sua realidade perante o espectador.
CONTRAS
- Embora com algumas atuações respeitáveis, A Médium não se destaca nesse ponto, abusando de alguns clichês tradicionais.
- O terceiro ato é bastante disruptivo e muito diferente de toda a construção mais intimista que foi criada.