Tão inevitável quanto Thanos, o vilão malthusiano da Marvel é dizer que O Exorcista, filme clássico de terror de 1973, definiu o seu gênero, o de possessão demoníaca. Não por menos, de cada onze filmes produzidos que abordam essa temática, doze absorvem vários dos mandamentos criados pelo diretor William Friedkin e baseado no livro homônimo de William Petter Blatty. Você pode detestar o gênero, mas conhece os momentos marcantes. Como é o clímax com o ritual do exorcismo e cenas como a virada de cabeça em 360 graus. Porém, mais do que isso, O Exorcista consegue agradar tanto na estética, com o bom uso de efeitos práticos, quanto também da parte histórica. Afinal, há um conflito intrínseco entre acreditar e não acreditar. Assim, imitado e copiado, é necessário demonstrar o legado e a importância desse filme de terror disponível no streaming da HBO.
Você pode me mostra tudo da Regan; o mesmo rosto, a mesma voz, tudo. E eu saberia dizer que não é a Regan. Eu saberia dizer dentro de mim. E estou lhe dizendo que aquela ‘coisa’ lá em cima não é minha filha. Agora, quero que você me diga que sabe com certeza que não há nada de errado com minha filha, exceto em sua mente. Você me diz que um exorcismo não adiantaria nada. Você me diz isso!
Chris MacNeil, mãe de Regan MacNeil buscando conselhos do Padre Damien Karras em O Exorcista, de 1973.
O legado de O Exorcista chega a ser atemporal.
Primeiramente, a história por trás de O Exorcista pode parecer simples até no Halloween. Afinal, é um caso clássico de uma jovem garota, Regan MacNeil, interpretada por Linda Blair, que acaba sendo possuída por uma entidade demoníaca mesopotâmica chamada Pazuzu. No entanto, O Exorcista não é tão simples quanto parece. Pois o ritual católico de expulsar espíritos impuros na verdade não é a essência do longa. Temos a todo o momento, uma primeira estrutura que busca uma explicação mais terrena e científica sobre o comportamento anormal da jovem Reagan. A possessão não é colocada in casu logo de cara, mas sim uma série de procedimentos médicos é realizado uma vez o comportamento cada vez mais errôneo. A mãe da jovem Regan, Chris MacNeil (Ellen Burstyn) também partilha do mesmo princípio. Problemas como esquizofrenia e paranoia permeiam a primeira parte de O Exorcista criando essa dualidade entre fé e religião.
Não é só o terror, mas a dualidade entre razão e fé.
Essa mesma dualidade é copiada com ótimos parâmetros em The Exorcism of Emily Rose (O Exorcismo de Emily Rose), de 2005, por exemplo. Que por sinal, é um dos poucos longas que conseguem trazer a aura de possessão de O Exorcista mesmo não sendo deste universo. No entanto, ao invés de um tribunal que está julgando a conduta da família e de um padre em um longo ritual de exorcismo, O Exorcista também tem uma dualidade na forma do Padre Damien Karras (Jason Miller). O filme na verdade é sobre ele e sua relação com a fé. Karras é um psiquiatra jesuíta que, durante o filme está em uma crise ferrenha de fé. Tanto é que em um primeiro momento, antes do contato com Reagan, ele não acreditava em possessão. Sua vinculação com a religião paradoxalmente não era uma das melhores.
Karras, no frigir dos ovos, era um padre relativamente cético, tal como Gabrielle Amorth na maioria de seus casos, o Exorcista Chefe do Vaticano e personagem a inspirar The Pope’s Exorcist (O Exorcista do Papa), de 2023, com Russel Crowe. No entanto, com o andamento da história de O Exorcista, a situação muda drasticamente. Depois do primeiro contato, em que se confirma a possessão, uma vez que a criatura passa a conhecer os maiores medos de Damien Karras. Sua escolha final, em se sacrificar, acreditando tanto no bem quanto no mal para livrar a jovem da influência maligna. É o clássico do herói trágico grego, concluindo assim a sua missão, mesmo que não tenha um final feliz. E esquecendo completamente as sequências. Dito isso, O Exorcista não é tão simples quanto aparenta. Sua história não se vincula apenas à luta entre o bem o mal, ou sustos gratuitos.
O ato do exorcismo é apenas um passo para O Exorcista.
Essa construção que consegue evoluir os personagens, trazendo seus próprios problemas internos é intrigante e faz com que O Exorcista não seja simplesmente um filme de terror de possessão. Ele é “o” filme de terror de possessão por construir essa narrativa que, no fim das contas, o ritual do Exorcismo é somente a cartada final na evolução do Padre Karras. Claro que temos uma mitologia envolta, seja com o uso de Tabuleiro Ouija – ferramenta que frequentemente é usada em outros filmes de terror – assim como a introdução do padre e arqueólogo Lancaster Merryn (Max von Sydow), que desenterra no Iraque alguns ídolos de um demônio antigo, Pazuzu. Junte tudo isso com o excelente trabalho dos efeitos práticos produzidos pela maquiagem e a equipe de efeitos de O Exorcista, e temos algumas cenas que foram arrebatadoras para a época. E que até hoje, com as devidas proporções são copiadas.
Quer exemplos? O clímax com a cena do exorcismo tem os mesmos parâmetros de praticamente qualquer filme de terror sobre o tema. Mesmo The Possession (Possessão), de 2012, que aloca a cultura judaica e um Dybbuk no roteiro, ainda assim tem o mesmo arcabouço pragmático. O já citado Exorcista do Papa tem a luta final contra Asmodeus da mesma forma. O não tão conhecido Season of the Witch (Caça as Bruxas), de 2011, com Nicholas Cage, é ainda mais canônico com o ritual. Afinal, usa o latim na Idade Média. O expurgo de Batsheba na franquia Invocação do Mal encerra todas essas exemplificações. Todos guardam uma espécie de agonia iniciada por O Exorcista. Essa aliás é capitaneada, como dito anteriormente, pelos efeitos práticos. A maquiagem que mostra a queda de Reagan nas garras de Pazuzu ainda hoje é um excelente produto de terror.
O legado de O Exorcista está construído. Será possível atualizá-lo?
Todas as cenas que necessitam de certa força física foram feitas com a participação dos atores. Contorcionistas foram usados, assim como bonecos melhores que Anabelle. Além disso, mexer com forças ditas sobrenaturais fez com que o filme tivesse uma aura própria, assim como The Omen (A Profecia) e sua trilha. Amaldiçoado para alguns, O Exorcista é cercado por lendas urbanas até hoje. Como é o caso da morte inexplicável de membros da produção, assim como equipamentos que não funcionaram direito e feriram os atores de verdade, ou de incêndios que custaram algumas semanas na produção do longa. Toda essa construção, e imaginando que não existia internet em 1973, fez de O Exorcista se transformar em um fenômeno midiático em sua aparição nos cinemas. Basta os primeiros acordes de Tubular Bells que o mundo sabe o que é, tal como Rains of Castamere no sucesso Game of Thrones, da HBO.
Passados quase meio século de seu lançamento, O Exorcista ainda é a magnum opus de qualquer filme que mencione possessão demoníaca. Seja pela construção de seus personagens, pela sua narrativa e pelos efeitos práticos. Foi possível exprimir o mal de uma forma que até então não foi vista. Profano para muitas pessoas, e uma obra prima do cinema de terror para outras, dificilmente é possível repetir os mesmos efeitos de O Exorcista, embora seja possível aumentar esta mitologia. Tal como Halloween, que recebeu uma sequência legado em 2018, O Exorcista terá o mesmo tratamento com The Exorcist: Believer (O Exorcista: O Devoto) em 2023. Resta saber é claro se o estudo inigualável de tudo que foi escrito e determinado pelo original de 1973 será atualizado de forma satisfatória ou se O Exorcista merece ser conhecido apenas pela sua versão original.