Poucos eventos são tão traumáticos na história da humanidade quanto a eclosão de guerras, sejam elas regionais ou mundiais. Elas ecoam por gerações, distribuindo ódio e rancor no lado dos derrotados, e dominação no lado dos vencedores. Nessa toada, as artes, seja o cinema ou o mundo dos games também são uma válvula de escape desse lado obscuro. A Guerra da Bósnia (1992-1995) foi a base para a criação pelo estúdio polonês 11 bit Studios do game This War of Mine. Já os eventos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) levaram a francesa Ubisoft a criar o indie Valiant Hearts: The Great War. No cinema, o Japão se transformou em um dos principais expoentes aos horrores da guerra. Já que na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foram em suas cidades que as armas nucleares norte americanas foram utilizadas. Essa é a origem do lagartão mais famoso do cinema, o Godzilla.
Impossível dissociar a criatura com o pânico e o medo dos japoneses de ataques nucleares, Godzilla é uma criação da modernidade. Da Era Atômica, período iniciado após o teste Trinity, no Novo México, em 1945, onde foi possível romper a barreira de ligações dos átomos. No entanto, o maior trauma sem dúvida foram os efeitos in loco de dois bombardeios, provocados por norte americanos em 1945. No palco dos eventos da Segunda Guerra Mundial, e sem universos paralelos, a Alemanha Nazista já estava subjugada na Europa, a Itália havia destituído o fascismo e havia mudado de lado. Restava a Ásia e o Pacífico. Como forma de obrigar uma capitulação e um recado para a União Soviética, que contrabalancearia o poder no período posterior, o da Guerra Fria (1947-1991), os Estados Unidos lançam dois ataques, um contra a cidade de Hiroshima, o outro contra Nagasaki.
Os Testes Nucleares são os pais de Godzilla…
Godzilla é filho desse tempo. Seu primeiro longa metragem foi produzido em 1954, e a criatura retrata, como uma espécie de metáfora, esse medo japonês. O termo Godzilla aliás, vindo do japonês Gojira (ゴジラ) é uma junção das palavras “Gorila” e “Baleia” e criado por Tomoyuki Tanaka e pelo estúdio Toho, que até hoje detém os direitos do Kaiju. Não por menos, dentro do roteiro de sua estreia, Godzilla é o resultado da radiação de testes atômicos, e seus poderes podem levar a uma nova hecatombe nuclear em um Japão do Pós-Guerra. Somente depois, com a popularização, é que os filmes de Godzilla começaram a entoar outros temas, como desastres ambientais em larga escala, por exemplo. Isso antes mesmo de Hollywood exercer sua influência e fazer uma versão pasteurizada, ou então da Universal recriar o seu Monsterverse, em 2014 e em 2019.
Além de seu nascimento atômico, Godzilla detém poderes especiais ligados a estas explosões. Seu sopro atômico, um de seus principais ataques é capaz de espalhar radiação por onde quer que acerte. Até mesmo sua presença é radioativa. Godzilla sacia sua fome com muita radiação, a responsável inclusive por curar seu gigantesco corpo. Até mesmo sua pele teve um cuidado especial para reverberar os pesares da bomba atômica, com cicatrizes e machucados. Os sobreviventes do Ataque de Hiroshima, por exemplo, passaram a ter queloides, cicatrizes na pele. Até mesmo sua bondade ou maldade perante a raça humana perfazem a tecnologia da quebra do átomo. Godzilla não é um amigo ou inimigo completo, mas a depender de quem sãos os rivais, pode ocasionalmente se unir a humanidade.
… E o medo de uma Hecatombe Nuclear foi o prenúncio de sua criação.
Ademais, não é só o momento da explosão de Hiroshima e Nagasaki que auxiliaram na criação do Godzilla. A propaganda antiguerra também era antinuclear e antiarmamentista. Em especial com a história real do navio de atum Daigo Fukuryu Maru ocorrida poucos meses do lançamento do filme de 1954. A história diz que, por não terem conseguido pescar o suficiente e com redes rasgadas, os pescadores do Daigo decidiram ir para o alto mar para melhorar a pescaria. Porém, não houve nenhum alerta para que eles saíssem da região que se encontravam. Estavam no Atol de Bikini. Sim, o mesmo atol lar de Bob Esponja e sua turma. A data coincidia com o teste de Castle Bravo pelos Estados Unidos, em 1º de Março de 1954. A radiação os atinge, assim como todo o pescado daquela região.
Retornando para Kanagawa, uma cidade da região de Kanto, os pescadores começaram a ter problemas de saúde. Frutos da radioatividade. O primeiro a morrer foi o operador de rádio. Porém, como ninguém avisou absolutamente nada, até mesmo os peixes daquele dia também estavam radioativos. E foram vendidos pelos mercados locais, espalhando a radiação tal como o desastre com o Césio 137 de Goiânia, no Brasil, em 1987. Os que sobreviveram foram estigmatizados pela população, com o medo de serem igualmente intoxicadas com a radiação. Os Estados Unidos ademais, jamais divulgaram o que continha nos testes de Castle Bravo, alegando segurança nacional. Os acontecimentos do Daigo Fukuryu Maru são tão importantes para a cinebiografia de Godzilla que a primeira cena de 1954 é exatamente essa. Um navio de pescadores e ao fundo, um imenso cogumelo de nuvens radioativas criado por testes nucleares.
É impossível retirar o medo atômico de qualquer filme do calango.
Assim, inútil retirar qualquer propaganda antiguerra do nascimento de um dos maiores monstros do cinema. Godzilla surgiu pelo simples medo de um novo bombardeio nuclear. Ou dos perigos que a radiação pode causar, o que o Ocidente veria mais tarde com o vazamento da Usina Nuclear de Three Mile Island, nos Estados Unidos em 1979. E os soviéticos com o amplamente conhecido desastre de Chernobyl, na atual Ucrânia, em 1986. Com o passar do tempo, seus filmes lançados agregaram novos questionamentos, até pelo fato de que um pesadelo nuclear foi sendo deixado de lado. Em uma espécie de limbo que de tempos em tempos ressurge, especialmente de líderes e governos autoritários. É esse o recado especial de Godzilla, quer você goste ou não. A história do calango radioativo é marcada profundamente pela guerra, pelo medo e por todas as mazelas que dela provém.