UMA JORNADA MACABRA ONDE AS ESCOLHAS ERRADAS LEVAM A UM FINAL RUIM
Existem filmes que mesmo declaradamente de nicho, acabam saindo de suas cercas e ganhando enorme repercussão. Foi assim com O Exorcista em 1973, com Espíritos: A Morte Está ao Seu Lado depois de 2004 e parece que o mesmo ocorreu com O Mal que Nos Habita. O filme argentino, lançado em 2023, repercutiu como uma película impressionante. Em um interior argentino quase pós apocalíptico, a possessão demoníaca é tratada como um vírus ou uma infecção que apodrece as pessoas e as controlam. No entanto, além de muito gore, são as escolhas completamente erradas dos personagens que levam a um desfecho amargo. Sem dúvida, o longa tem o famoso condão de ser odiado e amado na mesma proporção. Claro que é o espectador, nessa viagem estranha é quem vai decidir o destino deste filme disponível na Netflix e no Shudder e lançado no Brasil pela Paris Filmes.
ANIMAIS E CRIANÇAS AGEM DE FORMA ESTRANHA, COMO UMA INFECÇÃO:
Primeiramente, o Mal que Nos Habita ou Cuando Acecha la Maldad em bom espanhol, parte de uma premissa bastante inventiva, vindo da mente de seu diretor, Demián Rugna. Esqueça o exorcismo tradicional da cristandade de O Exorcista do Papa (2023). Dessa forma, existem regras de como um apodrecido deve ser limpo. E existem pessoas especializadas para tal função. Não se pode ter contato físico, nem usar pólvora. Os nomes estão proibidos, assim como a energia elétrica. Essa entidade tem o poder de controlar a mente das pessoas e de animais. E, logo no primeiro ato da película, já se destaca que essa jornada será macabra e completamente diferente de outros horrores singulares, como o oriental. Para a criação dessa estranheza, é necessário uma direção eficiente, com o abuso consciente de planos longos mostrando o vazio da região e o foco nas emoções dos personagens.

Esqueça os sustos mais previsíveis do gênero nos jump scares ao estilo Annabelle (2014). O Mal que Nos Habita se destaca por ser atmosférico, com o uso muito eficiente de efeitos práticos. E nesse caso, o espectador deve estar ciente de duas premissas. Ninguém, literalmente ninguém está a salvo dos poderes da entidade, e que a sanguinolência estará sempre à disposição para ser esfregada em todos os rostos. As mortes são bem eficientes, repugnantes por sinal, no mesmo estilo sádico de A Morte do Demônio: A Ascensão (2023) e do reboot de 2013. De fato, O Mal que Nos Habita é um dos poucos filmes que deixa uma sensação de retrogosto enjoativo no estômago. Afinal, ver uma mãe comendo o resto de seu filho possui não só uma carga dramática como também um horror físico incomum.
DESDE SEUS PRIMEIROS MOMENTOS, A ATMOSFERA É DE PESSIMISMO ETERNO:
Essa jornada de O Mal que Nos Habita é marcada também por uma fotografia coesa e uma trilha sonora que mais acrescenta do que atrapalha. É visível que em seus momentos iniciais, os planos são mais iluminados justamente pela entidade não ter sido apresentada. Assim, no decorrer de seus 99 minutos, as câmeras vão se alternando para um clima mais sombrio, com o bom uso das sombras e da noite. Novamente, não temos sustos vazios e baratos. Aqui, a atmosfera com a aparição de personagens duvidosos marca a imersão do espectador. Quanto a trilha sonora, não há um grande destaque, embora existam momentos estridentes. Porém, o uso do silêncio é satisfatório. Um destaque especial são seus momentos mais viscerais. O som de carne reflete um clima ainda mais tenebroso, acima até mesmo do que é visto no cinema tradicional do horror.

Agora, temos o aspecto que mais divide os espectadores de O Mal que Nos Habita, o seu roteiro. Escrito também por seu diretor, há uma clara dimensão em criar, além da entidade sobrenatural, um contexto psicológico, tal como o tailandês Quando A Morte Sussurra (2023). Assim, na trama, após um homem e seu irmão realizarem de forma errada o fim de um apodrecido, a cidade passa a ser atacada por essa entidade. No entanto, o Pedro Yarzulo de Ezequiel Rodriguez já conta com um passado obscuro, sendo um pai ausente e que acaba não conseguindo se comunicar direito com ninguém, nem mesmo com seu filho especial, parecendo quase um louco. Então, o filme acaba se dividindo entre o mais grotesco e a psiquê deste personagem com seus próprios demônios. O título do filme abre mais do que uma simples margem para esta interpretação.
O ESTÔMAGO DEVE ESTAR PREPARADO PARA O QUE VAI APARECER:
Porém, seguir uma narrativa na pele de praticamente um personagem exige não somente uma boa atuação como um bom roteiro. É neste momento que O Mal que Nos Habita começa a apresentar moscas em sua composição. Há momentos em que, mesmo em uma situação de desespero e com uma atuação convincente, o personagem toma atitudes que o levam para o pior dos destinos. Seu anseio de salvar seus filhos acaba se tornando sua ruína para uma entidade que em si não tem exposição, como Pazuzu e Lamashtu. Porém, quando o espectador começa a se questionar dessas ações, é sinal de que o filme se perdeu. Além disso, há uma quebra de expectativa com um primeiro ato potente, mas que se perde com a lentidão do roteiro durante todo o restante. Pelo menos, o terceiro ato segue um padrão bastante pessimista.

No fim das contas, O Mal que Nos Habita causou tamanha expectativa pelo fato de unir ótimos efeitos práticos em uma história sem amarras quanto ao destino de seus personagens. Além disso, sabe usar de maneira eficiente a ideia de possessão demoníaca como um vírus, coisa que o espanhol REC 2: Possuídos (2007) tentou. Claro que o roteiro acaba usando de artifícios expositivos para concluir a narrativa, derrapando em alguns corpos. Sorte que a direção e os momentos mais técnicos, como a sonoplastia e a fotografia fazem jus a criar uma atmosfera de opressão. O filme tem cenas que é difícil esquecer em pouco tempo. Esse mundo pós apocalíptico em O Mal que Nos Habita é espiritual, psicológico e pessimista. Assim, não importa quanto tente, será impossível vencer o mal que se encontra dentro de cada um nesse exemplo de horror argentino.
Números
O Mal que Nos Habita (2023)
Saindo das florestas e cidades da Ásia, a Argentina mostra que sabe fazer terror também. O Mal que Nos Habita, filme de 2023 vem com uma premissa diferente, trazendo a possessão demoníaca viral. Porém, o que mais impacta, além dos bons efeitos práticos com direito a muito sangue são as escolhas dos personagens.
PRÓS
- O estômago deve estar bem preparado, pois o longa abusa além da sugestão de cenas fortes e viscerais com todos os seus personagens.
- Criatividade em destacar a possessão demoníaca diferente da ocidental e da oriental. Uma mescla de vírus com o lado espiritual.
- A direção consegue transmitir um vazio tanto de seus personagens quanto da sua paisagem, abordando planos longos e distantes.
- Trilha sonora e fotografia engajam nos andamentos do filme, fazendo a imersão correta do espectador sem muitos defeitos.
- O pessimismo ronda toda a estrutura e narrativa dos personagens, e é fácil compreender que o terceiro ato, eficiente, será próximo desse conceito.
CONTRAS
- Mesmo que de acordo com o filme, as escolhas dos personagens acabam sendo inverídicas em determinado ponto. Mesmo no desespero.
- Para a duração do longa, seu segundo ato acaba perdendo expectativa em se tornar bem lento com a confusão entre o psicológico e o sobrenatural.