O QUE ACONTECER, ACONTECEU. E DEPOIS NÓS PARTIMOS:
2022 foi o ano de Pinóquio, o menino de madeira criado pelo escritor italiano Carlo Collodi. Afinal, não basta o Live-Action questionável produzido pela Disney, tendo como base a animação de 1940. Ou então a desconhecida animação russa que ganhou o mundo a partir de 2021. Antes, o mundo dos games também contou com Lies of P, de 2023, uma aventura steampunk também baseada no boneco de madeira. Entretanto, é com o olhar singular de Guillermo del Toro que a história ganha contornos do terror, perfazendo questões sobre o controle do Estado e a interdependência da vida e da morte. Esse tipo de temática já esteve marcada em outras obras do diretor. Agora, Pinóquio, na verdade, se torna uma marionete onde Del Toro reutiliza, de maneira quase livre, sua história em prol de uma narrativa bela e madura. E isso não é um ponto negativo, em hipótese alguma.
ESQUEÇA O ESTILO DISNEY. AQUI, A PROFUNDIDADE É DO OCEANO:
É de conhecimento geral que Guillermo del Toro é conhecido por seu olhar sensível e esteticamente sombrio. A Forma da Água (The Shape of Water, 2017) e Colina Escarlate (Crimson Peak, 2015) são filmes com uma atmosfera que beira ao gótico, lado que o diretor abraça como poucos. Com Pinóquio, Del Toro assume um clássico da literatura infantil e o transforma. Ao lado do co-diretor Mark Gustafson, a animação em stop-motion tem um cuidado quase artesanal. Em outras palavras, Pinóquio não é só uma releitura, é uma reimaginação de um conto transmitido e reconhecido por muitos. E todo esse lado estético de Del Toro é evidente e um dos pontos altos da animação. Seu toque trágico e esperançoso se funde com a magia da animação para entregar ao espectador uma história voltada ao público adulto.

Essa história, aliás, criada pelo roteiro do próprio del Toro e Patrick McHale é uma adaptação livre da obra de Carlo Collodi, misturando elementos clássicos com inovações ousadas. Há a criação de novos personagens e a mistura de outros, mas que não comprometem a narrativa nem para os mais puristas. A ambientação desta vez é na Itália fascista de Mussolini, o que dá uma nova camada de complexidade política e emocional. Ao invés de focar na moralidade tradicional do menino bom e de sua moralidade, Pinóquio passa pelo questionamento do que significa ser humano num mundo que valoriza a obediência cega, com requinte de 1984, clássico da literatura de George Orwell ou de Beholder, de 2016 da Warm Lamp Games. As escolhas narrativas são maduras, corajosas e, por vezes, desconcertantes. Vale destacar que o roteiro tem um certo tipo de lirismo consciente, equilibrando crítica social e afeto fantástico.
ESTETICAMENTE IMPECÁVEL, PINÓQUIO É BELO, TRISTE E SOMBRIO:
Claro que de nada adiantaria um roteiro excepcional em seu texto e subtexto, se a atuação não seguisse essa trajetória. E em Pinóquio temos uma dublagem que é uma constelação. Gregory Mann empresta uma doçura e energia cruas a um Pinóquio que não é perfeito. Enquanto isso, David Bradley, o Geppetto desta animação, entrega um desempenho comovente, carregado de luto, tristeza e realidade. Ewan McGregor dá voz a Sebastian J. Cricket com charme e timing cômico impecáveis, funcionando como o narrador e consciência da história. Em relação à dublagem brasileira, disponível na Netflix, não é um caso discrepante, mas aqui temos uma animação em que a versão original se sobressai. As interpretações vocais são emocionalmente envolventes, reforçando a densidade psicológica, algo que é essencial para a proposta deste Pinóquio, que não é realista na estética como o Live-Action de O Rei Leão (The Lion King, 2019).

Mesmo com todos os critérios de narrativa, o grande feito de Pinóquio sem dúvida é técnico. O uso primoroso da animação em stop-motion. Com produção da ShadowMachine e apoio do estúdio de Del Toro, cada frame foi meticulosamente trabalhado, e tudo isso é perceptível de imediato ao espectador. As marionetes, feitas à mão, possuem expressividade notável. O uso de efeitos práticos contribui para a imersão e oferece uma textura tátil que falta em muitas animações digitais atuais, criando uma imersão espetacular. As transições entre cenas, os movimentos fluidos e a riqueza de detalhes nos cenários fazem deste um dos trabalhos mais ambiciosos do stop-motion moderno, lembrando os tempos áureos em que Tim Burton também se aventurava nesse tipo de animação com A Noiva Cadáver (Corpse Bride, 2005). Aliás, Burton é inclusive um diretor tão excêntrico quanto o mexicano Del Toro.
CADA CENA TEM SUA HISTÓRIA, COM O INCRÍVEL USO DO STOP-MOTION:
Por parte da sonoplastia, Pinóquio tem uma trilha sonora composta por Alexandre Desplat que é melancólica, com temas recorrentes que sublinham todas as suas trágicas questões. Mesmo que usando canções, algumas originais, a animação não é um musical, diga-se de passagem. Entretanto, o som é cuidadosamente mesclado, com silêncios impactantes e efeitos sonoros que ampliam a imersão na atmosfera sombria e quase gótica. Aliás, existe uma escolha coesa, que é a de não se utilizar de grandes números musicais ou então músicas grandiosas e de impacto, como é o tradicional em animações no geral. Com a estrutura priorizada de Pinóquio, esse tipo de qualidade sonora gera um tom introspectivo, diferenciando-o de outras adaptações e elevando a estética de Del Toro. De outra forma, Desplat entrega uma trilha discreta e sofisticada, que eleva a experiência emocional sem jamais se distrair da narrativa.

Encerrando os aspectos técnicos de Pinóquio, é impossível não mencionar sua fotografia e, no pacote, o design de produção. Que não possuem outro adjetivo senão arrebatador. Dan Laustsen, colaborador frequente de Del Toro, ajuda a criar uma atmosfera carregada, um barroco que facilmente estaria nas melhores aulas de história. A paleta de cores é dramática, oscilando entre tons frios nas cenas de luto e tristeza profunda ou questionamentos morais e tons quentes nos momentos de descoberta e fantasia, que se aproximam bem mais do seu original. Praticamente todos os cenários, da pequena vila italiana até o submundo, tudo é visualmente impressionante. Cada plano parece composto com o cuidado de uma pintura, equilibrando, ao mesmo tempo, beleza e melancolia. A cinematografia valoriza o trabalho artesanal dos animadores e reforça o caráter emocional desta reimaginação de Pinóquio, que pode ser tudo, menos simples ou infantil.
PINÓQUIO SAI DA MENTE DE DEL TORO COMO UMA FONTE DE QUESTÕES:
Apesar de toda a temática mais sombria e mundana, Pinóquio é envolvente. Sua diversão está mais no encantamento visual e no desafio intelectual que propõe, e não na diversão propriamente dita. Não sendo apenas uma animação de ação ou humor leve. Sua força inclusive se aproxima, mas não é igual ao que a animação japonesa faz, como em O Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka, 1988). Sendo a única crítica, mesmo com toda a imponência ao incorporar temas como fascismo, morte e livre-arbítrio, tais questionamentos já estavam em outra obra. E que, quando comparada, se apresenta como uma narrativa melhorada, mais lúdica e ainda mais impressionante. Esse filme é ninguém menos do que O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006). Mesmo assim, Pinóquio desafia, emociona e convida à reflexão, sendo uma aula clara de como adaptar clássicos sem os diluir.

No fim das contas, a animação de Pinóquio produzida por Guillermo del Toro é uma joia rara na cinematografia contemporânea. É, na verdade, um conto sombrio e emocionalmente profundo que prova sem nenhum questionamento que animações podem ser tão profundas quanto um filme de Terrence Malick ou Darren Aronofsky. A direção de Del Toro, o roteiro sensível, a excelência técnica do stop-motion e a força das atuações vocais criam uma experiência rica que abre os bracos para o espectador. É uma obra que exige, mas que oferece em troca uma das interpretações mais belas e maduras da clássica história de um boneco que queria ser humano. Mesmo com uma temática que é essencial ao trabalho central de Del Toro, Pinóquio se destaca como um dos melhores e mais profundos trabalhos do diretor. Uma nova roupagem que só eleva o conto de Carlo Collodi para outros patamares.
Números
Pinóquio de Guillermo Del Toro (Guillermo Del Toro's Pinnochio) - 2022
Guillermo Del Toro abraça a conhecida história de Pinóquio, o menino de madeira que queria ser humano. Porém, esqueça o clássico da animação da Disney, pois essa roupagem é livre. Mais do que uma animação, essa versão ganha aspectos sombrios em sua estrutura e narrativa, sendo uma carta aberta contra o fascismo.
PRÓS
- Direção arrebatadora de Guillermo Del Toro no sentido de provocar e instigar questões que são difíceis em animações em geral.
- A atmosfera mescla momentos sublimes e desafiadores, com o uso abundante de efeitos práticos com o stop-motion.
- Esteticamente, a animação tem uma bela fotografia e uma sonoplastia que não é memorável, mas se mescla de forma quase perfeita.
- As vozes de cada personagem, seja no original ou no Português do Brasil, são extremamente coerentes e emotivas. Embora a original seja melhor.
- A narrativa de Pinóquio é livremente baseada, e isso se ajusta aos contornos mais dramáticos impostos pela direção.
- Embora não seja divertido no sentido próximo da palavra, é contemplativo e exala exatamente a sua proposta.
CONTRAS
- Embora poderoso em praticamente todos os aspectos, Pinóquio ganha a sensação de que suas amarras já foram vistas em algum outro lugar.