A distopia sempre consegue chamar a atenção de leitores, jogadores e espectadores. Vimos a Alemanha Nazista vencer a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) em Wolfenstein: New Order (2009). O mesmo com a busca pela sobrevivência em Fallout 4 (2015). Ambos games produzidos pela Bethesda. As mulheres já foram privadas de direitos em The Handmaid’s Tale (1985), tanto no livro de Margaret Atwood e na série da Paramount. E temos também os escritos de Suzanne Collins; Jogos Vorazes (ou Hunger Games em Inglês). Acontece que esse mundo distópico chamado Panem, dividido em doze distritos e uma capital é capitaneado por uma tirania centralizadora que forja diversão e luxo á Capital. E pobreza nas periferias. Da mesma forma que Roma, o centro do mundo no Império Romano da Antiguidade fazia com suas províncias através da política do pão e do circo, ou indo para o latim, panem et circenses.
Primeiramente, para quem não conhece o Universo de Jogos Vorazes, é necessário um breve resumo. Tempos antes dos acontecimentos dos livros, o mundo no qual conhecemos foi extinto por meio de uma guerra nuclear e desastres naturais. Isso não é novidade, visto até em outras mídias como Frostpunk, game da 11bit Studios. Continentes e cidades foram varridas do mapa. Panem é fruto dos sobreviventes dessa catástrofe, que criaram uma espécie de governo no que restou dos países da América do Norte. Acontece que a Capital de Panem, chamada de Capitol em Inglês, traduzido como “Capitólio” oprimiu todos os outros distritos, dominando-os em uma Guerra Civil que levou a aparente desintegração do 13º Distrito. Sendo os vencedores dos espólios da guerra, foi declarado pelos Tratados de Traição que cada um dos distritos perdedores ofereceriam tributos para duelarem. Eram os Jogos Vorazes.
Panem e a Roma Antiga tem mais semelhanças do que diferenças.
Esse é de fato o coração de todo o desenrolar da história em Jogos Vorazes. Porém, a questão em si não é o modus operandi da ditadura implantada que lembra muito regimes totalitários. É possível também pensar em semelhanças no gigantismo na arquitetura de Panem com regimes reais (o de Hitler e o de Stálin). Porém, a questão aqui são os Jogos Vorazes e a relação da Capital com seus outros distritos. Existem semelhanças entre esse mundo distópico e sua Capital e a Roma Antiga, o pináculo de poder da República Romana (509 a.C até 27 a.C) e depois do Império homônimo (27 a.C até 325 d.C), assim criado quando Augusto fora transformado em Imperador pelo Senado Romano. Neste período, é de conhecimento a política estatal de oferecer comida e espetáculos como forma de diminuir possíveis revoltas sociais. A política do pão e circo.
Em Jogos Vorazes, onde o enredo é narrado por Katniss Everdeen, personagem e tributo do 12º Distrito, há uma incredulidade quando se chega à Capital. Responsável por ceder carvão para a Capital de Panem, o 12º Distrito é uma dos mais pobres e longínquos. Enquanto a Capital se localiza em algum local das Montanhas Rochosas (entre os antigos estados do Iowa e Colorado), o 12º Distrito agrega regiões sobreviventes na Nova Inglaterra. Contudo, o descrédito de Katniss é observar a forma como os moradores da Capital eram bizarros e estranhos. Homens e mulheres se vestiam da maneira mais estravagante possível e realizavam procedimentos estéticos questionáveis. Era comum observar pessoas com as peles pintadas e implantes de sobrancelhas e garras. Um verdadeiro desfile da Balenciaga pós apocalíptico. Claro que toda essa pompa só existia para os caprichos dos ricos e poderosos da Capital.
O Pão era só para os romanos, mas o Circo era extraordinário.
No mundo real, morar na Roma do Império Romano poderia não ser um luxo exacerbado como o visto na Capital de Panem. Porém, era melhor do que em suas províncias, que iam da Lusitânia ao Oeste ate a Armênia ao Leste. Isso em 117 d.C, nas mãos do Imperador Trajano. Facilmente o maior império da humanidade naquele tempo. Construída entre Sete Colinas, Roma era o grande centro político do mundo. Belo, elegante e com bastante conforto para seus cidadãos mais abastados. Os aquedutos de Roma jorravam a água necessária para as fontes. Até mesmo o governo romano, para aqueles que precisavam de um auxílio, eram responsáveis por entregar alguns quilos de trigo ao povo. Claro que aqui o termo é restritivo. Para isso, o cidadão deveria ser de facto romano. Não se contava nenhum estrangeiro oriundo de outra província para esta benevolência.
Assim, se tínhamos o pão que mantinha o centro do poder nas rédeas do Senado, e logo depois, dos Imperadores, era com o Circo que a “diversão” acontecia. As batalhas de gladiadores e de bigas sem dúvida eram os torneios mais memoráveis e contavam com um público avassalador. E para isso, monumentos igualmente icônicos foram construídos, como o Coliseu de Roma pelo Imperador Vespasiano em 80 d.C e o Circo Máximo, esse mais antigo ainda e datada da Era do Reino Romano. A questão contudo são os detalhes. Os chamados gladiadores eram, na maior parte das vezes estrangeiros, os chamados bárbaros de áreas dominadas. Ou então mercenários ou desgraçados da Península Itálica. O sangue desses duelistas eram postos a prova como uma forma de divertir a plateia, evitar rebeliões e diminuir qualquer forma de descontentamento com o governo.
Mais do que política de massa, é uma política de coação aos oprimidos.
Na história criada por Suzanne Collins, torna-se evidente o uso do pão e circo como política de massas, em especial quanto aos Jogos Vorazes na Capital. Afinal, o Torneio se torna um atrativo que é televisionado e visto 24 horas por dia. Durante os dias dos Jogos, toda a Capital apenas tem os olhos voltados para este evento. O que farão? O que deixam de comer? Fica claro o apêndice de uma sociedade extremamente vigiada, como a de 1984 de Jorge Orwell, ou de Beholder, game da indie Warm Lamp. Há uma aura de misticismo que transborda da Capital e que simplesmente apaga qualquer possibilidade de convulsionar o centro do poder. Afinal, para os moradores do Centro de Panem, não há interesse em saber sobre os outros distritos.
Contudo, um outro aspecto é visto nestes dois mundos, porém com mais evidência na Panem criativa do que em Roma. A ideia de uma mensagem de coação, intimidação da Capital sem o disparo de um revólver. Escolher, todo ano, um menino e uma menina para participar dos Jogos Vorazes é uma forma de mostrar aos outros distritos, os perdedores, que é por causa de sua rebelião que suas crianças morrerão para o divertimento da Capital. E que, se acaso voltem a proferir as mesmas bobagens de secessão, poderão ter destinos ainda piores, como o relatado ao 13º Distrito no começo da história e ao 12º Distrito durante a Rebelião de Katniss. Essa mensagem brutal é vista apenas pelos dominados, enquanto a Capital se mantém em seus sonhos idílicos de uma sociedade que lhe agrada. Em Roma, não era incomum que gladiadores também fossem personalidades contrárias ao regime romano.
O Pão e o Circo existiram em Panem tanto quanto na Roma Antiga.
Desta forma, é claro que no mundo da literatura, licenças poéticas podem ocorrer. E é até de bom tom que elas ocorram. E neste caso, embora bastante desproporcional e quase beirando ao caricato, o uso dos Jogos Vorazes como ferramenta de política de massa é inquestionável e foi uma releitura da política do Pão e Circo do Império Romano. Afinal, é uma ferramenta prática de controle social e facilmente vista em outras mídias que envolvam estratégia e política. De um lado, os bajuladores e os principais expoentes da política continuam a manter os seus privilégios, enquanto a massa é abduzida. Do outro lado, possíveis rebeliões na parte periférica e no centro do poder são mitigadas. E um aviso aos rebeldes é lançado. Os Jogos Vorazes tem estes dois lados. Não por menos, quando essa política falha, o governo de Panem finalmente começa a ruir.