De uma vez por todas, o Irã não é árabe!
Você já ouviu alguém dizer que o Irã é árabe? Ainda mais nos últimos tempos. Então vem um spoiler, ele não é. E não é por “pouco”. É tipo confundir que o Brasil fala espanhol por estar perto da Argentina . A Noruega e a Itália não são idênticas só porque estão na Europa. O Irã é persa, fala farsi — muito diferente do árabe, que nem da mesma família é —, tem outro alfabeto, outra história, outra identidade e até um jeito diferente de ser muçulmano. E, sim, dá para aprender tudo isso jogando videogame — com controle na mão, cabeça no lugar e três jogos na sua prateleira virtual. É bom conhecer essa diferença antes de se aventurar nas missões da geopolítica mundial. E quem sabe brilhar nas redes sociais sobre esse assunto.
#1. 1979 Revolution: Black Friday – História, farsi e revolução na veia.

Começando, 1979 Revolution: Black Friday é uma viagem no tempo com tapa na cara. Disponível na Steam desde 2016, você joga como Reza Shirazi, um fotógrafo que registra os protestos da Revolução Iraniana de 1979. Nada de bombardeios gratuitos ou americanos salvando o mundo. Aqui, você vê o Irã por dentro, ouvindo farsi — ou persa, a palavra mais adequada —, cruzando ruas de Teerã e encarando dilemas morais entre o regime do xá e a chegada do novo Estado teocrático. Além de entender que persa não é árabe, o jogador tem uma aula de história interativa. Para quem só viu o filme Argo (2008), o Irã, antes de ser governado pelos aiatolás, era uma monarquia. Tutelada pelo ocidente — com o nome de Estados Unidos e Reino Unido —, o Xá modernizou o Irã.
#2. Assassin’s Creed: Mirage – Um árabe em Bagdá, uma mentora… persa.

Agora, na batalha eterna entre Assassinos e Templários pela Maçã do Éden, é a vez de Bagdá. O antigo centro do Califado Abássida, um império árabe. E muito antes da invasão dos Estados Unidos ou do controle do ditador Saddam Hussein (1937-2006). O protagonista de Assassin’s Creed: Mirage, Basim, é um típico jovem árabe. Só que sua mentora, Roshan, é persa. Essa diferença não é apenas citada — ela aparece nos diálogos, nos comportamentos e até nas roupas. Roshan é mais contida, sábia, quase melancólica, tanto pela idade quanto pela sua ascendência. Um contraste nítido com o estilo vibrante e oral do protagonista. Até mesmo seu nome não é o simples acaso. Roshan tem uma raiz no persa médio, do Império Sassânida, e significa luz vibrante. Um ótimo nome para uma mestra assassina que faz parte do grupo dos mocinhos.
Historicamente, os persas foram dominados pela expansão do Islã. O mesmo aconteceu com a Constantinopla dos bizantinos em 1453. Porém, nunca foram assimilados. O persa sobreviveu e prosperou como forma de resistência e adaptação ao novo tempo. Inclusive, esse foi o idioma de poetas, astrônomos e sábios que moldaram o mundo islâmico e atravessaram fronteiras, mudando palavras em línguas como o armênio e o turco. Os persas mantiveram sua arquitetura, suas festas, como o Nowruz, sua poesia e até seu jeito de rezar. E Assassin’s Creed: Mirage delimita muito bem essas diferenças nestes personagens. Importante lembrar que o Irã é maioritariamente xiita, enquanto a maioria dos países árabes é sunita. Isso cria diferenças de rituais, de liderança religiosa e até de interpretação do Alcorão. Mesma religião? Sim. Mesmo povo? Nem de longe.
#3. Heaven’s Vault – Quando a linguagem constrói mundos.

Se Assassin’s Creed: Mirage te levou às ruas de Bagdá, Heaven’s Vault te joga num universo onde a alma persa brilha em ruínas antigas. Aqui, você é Aliya Elasra, uma arqueóloga espacial que decifra línguas perdidas, como se fosse uma Indiana Jones persa destrinchando as inscrições de Beistum. Cada símbolo traduzido revela pedaços de civilizações antigas. Os gregos de Homero e Hesíodo, os babilônicos de Nabucodonosor, e os persas de Dario e Ciro. Estão ali, dos persas, a arquitetura sofisticada, a poesia oral e uma obsessão por preservar a memória. Isso mostra como a língua, com sua raiz indo-europeia, é um pilar da identidade iraniana, resistindo séculos de conquistas. Chamar um persa de árabe? É como apagar essa história milenar. Um brasileiro gostaria de ser chamado de argentino? Acho que não.
Esse jogo derruba o mito de que “parece igual, então é igual”. As ruínas em Heaven’s Vault têm um quê de Persépolis. As civilizações do jogo guardam essas histórias em poemas e relíquias, onde poetas como Hafez e Rumi são tão venerados quanto reis. E quando você mergulha nisso, percebe a diferença. O persa, com letras únicas como پ e ژ, adapta o alfabeto árabe. Mas é só isso. Em termos de família, o persa é mais próximo do português do que o árabe, uma língua semítica. Além disso, o povo persa tem orgulho de sua herança indo-europeia, chamada ‘ariana’ na história do Irã — um termo antigo — sem relação com o uso racista no século XX. Inclusive, o nome Irã vem de ‘Aryanam’, que significa ‘terra dos arianos’ na língua da Pérsia antiga, o avéstico.
Bônus. Civilization VI – Ciro, o pai do Irã moderno.

Enquanto Heaven’s Vault te faz decifrar línguas antigas, Civilization VI te coloca no comando de um império. Jogos desse gênero explicam muita coisa, como a rixa entre Índia e Paquistão. E, jogar com Ciro II em Civilization VI (2016) é uma forma divertida de entender a grandiosidade dos persas. Ciro não só fundou o Império Aquemênida, como também reconstruiu a Babilônia. Tudo isso foi registrado no Cilindro de Ciro, resquícios de um documento hoje no Museu Britânico. Depois dele, Dario I continuou a expandir a cultura persa. Foi por sua vontade que as inscrições em Beistum levaram o mundo moderno a entender a língua persa — uma Pedra de Rosetta iraniana. Em Civilization VI, Ciro, O Grande, é um líder diplomático, culto e eficaz. Você conquista territórios sem perder o respeito dos vizinhos, os agregando ao seu vasto império.
Enquanto isso, os impérios árabes surgem séculos depois. No jogo, são chefiados por Saladino, um curdo — nem árabe, nem persa. Por que, então, ele representa os árabes? Porque Saladino foi uma figura central do mundo islâmico medieval, governando como sultão do Egito e da Síria. Ele falava árabe, governava povos árabes. E é celebrado na história como um ícone do Islã sunita, mesmo sendo curdo. Claro que Civilization VI consegue separar bem essas civilizações, mostrando que persas e árabes têm valores diferentes. Por mais que sejam muçulmanos. A expansão do mundo árabe é focada na religiosidade de Maomé. Enquanto a Pérsia tem influência comercial e diplomática. São estilos diferentes. No mundo real, o Irã celebra Ciro até hoje, como símbolo de orgulho nacional. Eles não querem ser confundidos com ninguém — nem precisam.
O Irã é persa. E ponto final.

- 1979 Revolution: Black Friday é uma criação da iNk Stories e lançado em 2016 na Steam. Depois, ganhou versões para o Xbox One, PlayStation 4, Nintendo Switch e dispositivos mobiles. Assassin’s Creed: Mirage é fruto da Ubisoft. Lançado em 2023, ganhou os holofotes no PlayStation 4 e 5, Xbox One e Series S/X e na Steam. Já Heaven’s Vault é um indie da inkle Limited, disponível desde 2021 para o PlayStation 4 e para a Steam. E galgou depois o Nintendo Switch. Por fim, Civilization VI, da Firaxis, conta com duas expansões, Rise and Fall (2018) e Gathering Storm (2019) e tem versões para Nintendo Switch, PlayStation 4, Xbox One, Steam e nos dispositivos mobiles. E então, quer subir de nível? Jogue esses games, descubra por que o Irã é persa — e não árabe — e nunca mais se confunda.