A Bruxa, filme de 2015 do diretor Robert Eggers não é o mais simples longa de terror. Pelo contrário, o tanto que o longa possui de subtextos exige que o espectador preste bastante atenção desde a construção do mundo até mesmo nas falas e nas simples ações dos personagens. Indo mais para um terror psicológico com pitadas do sobrenatural, mas voltado de fato para a família extremamente fanática – puritanos da Nova Inglaterra. Nesse contexto, três animais aparecem no filme, em parceria com o bode negro estrela de pôsteres e até um dos principais personagens. Além de Black Phillip, temos a aparição bem estranha de uma lebre e de um corvo. O que pouca gente sabe é que esses três animais são associados a magia e a bruxaria. E o filme, sabendo disse, deixou essas pistas em A Bruxa, que você vai ver agora nessa Curiosidade do Guariento Portal.
Atenção: Ao falar sobre esses três animais, é possível que momentos chaves da trama de A Bruxa (2015) sejam revelados. De outra forma, tem spoiler a caminho. Então, se você não viu o filme ou não quer saber dessas coisas antes de assistir, o Guariento Portal recomenda que pare por aqui. Veja o filme e depois retorne. Caso contrário, sinta-se a vontade para continuar.
Atenção 2: A maior parte dos conceitos aqui apresentados se deve a visão Cristã desses animais e do termo Bruxaria. Até pelo fato do filme A Bruxa explorar esse imaginário. Se por ventura você segue alguma prática Wicca, Pagã ou de outra denominação, não sinta-se ofendido. Aliás, pode destacar aqui como esses animais são vistos em suas religiões.
Quem diria que a lebre poderia ser associada com a prática de Bruxaria? Pois bem. Além de fertilidade, ela também poderia servir como disfarce ou até mesmo familiar de um bruxo.
Começando pelo animal mais bonitinho dentro os três que aparecem em A Bruxa (2015). Em um determinado momento da narrativa, enquanto andam a procura de alimentos, Caleb (Harvey Scrimshaw) e seu pai William (Ralph Ineson) encontram uma lebre que olha fixamente para eles. Enquanto prepara sua arma, mas a caça não consegue ser efetivada. Tempos depois, o que parece ser a mesma lebre é definitivamente capturada pelo mesmo Caleb e sua irmã, a protagonista Thomasin (Anya Taylor-Joy). No entanto, pela boa direção do longa, é possível perceber que o olhar daquela lebre não é simplesmente o olhar de um animal. E o diretor sabe muito bem como brincar com isso. O subtexto dentro dessa pequena lebre é que o animal foi associado em tempos antigos não somente as bruxas como também a deuses pagãos antes da ascensão do Cristianismo por toda a Europa.
Já se perguntou o motivo de termos ainda a visão do Coelho da Páscoa em uma celebração tipicamente Cristã? Pois então, começamos a história do coelhinho aqui. Numa forma de multiplicar os adeptos da nova religião que surgia, era comum sincretizar antigas tradições para que os novos adeptos não percebessem tamanha diferença. Foi o que aconteceu com o Natal e a Páscoa por exemplo. Nas regiões da Escandinávia e da Germânia por exemplo, a mitologia celta e teutônica tinha uma deusa da fertilidade, Ostara. Até mesmo por ser um animal bastante lascivo e que gera proles bem rápidos. Além da fertilidade, o coelho era relacionado com a Lua e com a Magia. Não por menos, na Idade Média acreditava-se que as bruxas ou se transformavam nessas criaturas para não serem vistas ou tinham como familiares. Algo que O Mundo Sombrio de Sabrina demonstra com maestria.
Mas antes da Era Cristã, na era de deuses antigos, a lebre era ligada a Ostara, a um ritual da fertilidade que hoje culmina com a Páscoa. Ou que pelo menos foi assimilado.
Uma lenda anterior a Cristandade informa que certa vez, uma lebre se dirigiu a Ostara pedindo favores, e em troca ele lhe oferecia ovos decorados e pintados. Ostara ficou tão feliz com o presente que decidiu partilhar com a humanidade, deixando com que a lebre fosse viajar ao redor do mundo entregando esses presentes. Porém, na Inglaterra Colonial elas foram vistas com outros olhos. Vistas como mal agouro, prontas para estragar todas as plantações e roubar os animais das fazendas. A transmutação das bruxas em lebres continuou, e não por menos, em escritos folclóricos daquela época é possível notar como um mal presságio a ideia de que coelhos apareceriam em plantações. Agora, um animal que de fato pode ser encarnado no mal agouro e também aparece em A Bruxa é o Corvo, que desde sempre foi visto como um animal problemático por assim dizer.
Edgard Allan Poe usou o Corvo para um de seus contos mais proeminentes. Mas a própria criatura, mesmo tendo seu lado de fertilidade, era associado com a morte e com o Outro Mundo.
Indo para o Corvo, temos aqui um animal que só de vê-lo não é preconceito nem dúvida, é constatação. Uma ave negra, que come restos de outros animais e que pode copiar a voz de outros animais e até mesmo de seres humanos. Em A Bruxa, em uma das cenas mais memoráveis, após a perda de seus dois filhos, o bebê Samuel e Caleb, Katherine (Kate Dickie) tem uma visão dos dois. E vendo o filho menor chorar, acaba amamentando o bebê. Ledo engano, pois na verdade ela estava sendo ludibriada por um corvo, que come parte de seu seio. Da mesma forma que a lebre, o corvo também tem sua vinculação a fertilidade. Porém, sua imagem está atrelada com Morrígan, a Rainha Fantasma de escritos celtas e pagãos. Detentora de três faces, Morrígan tem sua contraparte na Mitologia Grega com as Fúrias, dado o seu caráter volátil.
Ou quem sabe ainda com Hécate, detentora também de três faces, a Donzela, A Anciã e A Mãe. Fato é que o Corvo, para os Celtas esteve sempre associado com os Campos de Batalha e com a Morte. E Morrígan era a Rainha desses domínios. Não por menos, se transformando em um desses animais para devassar os campos com os mortos e levá-los para o Outro Mundo. Aliás, a associação do Corvo com o Outro Mundo só piorou sua influência negativa com mais uma vez o advento do Cristianismo. Se com a lebre foi possível sincretizar de forma não tão ruim em alguns momentos, o Corvo foi transformado direto em uma figura demoníaca, e no seio da sociedade celta, na Irlanda. Conta-se que São Patrício, o padroeiro dos irlandeses teria mandado um enorme corvo gigante que assolava aquelas terras para o Purgatório.
Isso só piorou a visão do animal com a ascensão Cristã na Irlanda. Conta-se que São Patrício batalhou com Cornú, um corvo gigante que devastava aquelas terras e o aprisionou no Purgatório. Um dos vários feitos do padroeiro do povo irlandês.
Na escatologia cristã, o Purgatório seria um meio termo entre o Céu e o Inferno, uma montanha onde as almas esperariam as ordens de São Pedro, o detentor das chaves do Céu para entrar no Reino Sagrado. Cornú era o nome do animal, e ali ficaria a vagar por toda a existência. Como Morrígan também tinha uma face voltada para a fertilidade, assim como a Morte, ela também pode ser sincretizada com ninguém menos do que Lilith, a Rainha dos Súcubos e que também tem imagens assimiladas com um Corvo. Agora, se existe algum animal que teve sua imagem completamente dilacerada se comparado com as mitologias anteriores, esse sem dúvida é o bode ou a cabra. Luxuriosos por natureza, assim como as lebres, os bodes eram o prelúdio perfeito para um dos principais pecados da cristandade, e que tal uma das personificações do próprio Mal.
Se você não assimila a aparência caprina com o Mal é que você está em outro planeta, ou não está ligado a visão ocidental do Mal. E Black Phillip, de A Bruxa, não faz questão alguma de se guardar como bonzinho.
Em A Bruxa (2015), Black Phillip, o bode negro é sem dúvida o principal antagonista que desde a primeira vez que aparece já deixa escapar que boa coisa não é. Além de uma canção feita pelos irmãos mais novos de Thomasin, a aparência nenhum pouco simpática da criatura negra deixa escapar que, seria ele uma das formas do próprio Diabo? Com o decorrer do longa, o espectador tem a resposta afirmativa de que Black Phillip de fato era o Mal Encarnado, levando a jovem a escrever o seu nome no Livro da Besta e se tornando de fato uma Bruxa. Excluindo todas as questões éticas e morais que o filme leva a destacar, e isso pode ser feito em outra Curiosidade do Guariento Portal, os bodes sempre foram vistos como animais nenhum pouco ordeiros, e adoradores do pecado da luxúria.
Basta saber que os machos tem ereções quase diárias, e perto de fêmeas, fazem questão de mostrar que estão com libido. Sátiros na Mitologia Grega, criaturas metade humana e metade bode eram animais ditos selvagens, com os prazeres sempre a mente. Não por menos, o principal deus pagão com essas características era Pã, que por si só poderia causar loucura a sua imagem. Essa loucura aliás era visceral, para com todos os desejos mais profundos dos homens, incluindo é claro o sexo. Com chifres e com a metade de baixo em forma de bode, é claro que com o Cristianismo o uso dessa imagem foi para ninguém menos do que o próprio Diabo. Na Idade Média, essa assimilação foi ainda mais forte, trazendo o animal para o seio das bruxas como nenhum outro. Os Sabbaths por exemplo, encontros ritualísticos das bruxas foram pouco a pouco sendo assimilados ao bode.
Obviamente a fertilidade é o segundo nome para o bode, dado a vontade de copular a todo o momento. Por isso mesmo, Pã era uma criatura meio bode meio humano que representava esse desejo mais profundo. Mas a Bíblia também faz questão de colocar esse animal no lado negro da força.
No período da Inquisição Espanhola, um dos principais casos foi de um julgamento ocorrido na atual Região dos Países Bascos. Catalogado e deixado para a posteridade, o julgamento fez questão de queimar as mulheres acusadas de bruxaria, e fazer a analogia do animal com esses rituais. Com o auxílio do Novo Testamento inclusive, a imagem do bode, e de Black Phillip foi taxada para todo o sempre como uma das personificações do Mal Supremo. Diz o Evangelho segundo Mateus que ocorrerá uma divisão entre as ovelhas e os bodes (ou cabras). As ovelhas, ordeiras estarão a direita do pastor, enquanto as cabras a esquerda. No entanto, todo aquele que estiver a esquerda será amaldiçoado, sendo lançado no fogo eterno aos cuidados do Diabo e de sua horda de anjos caídos. Com uma fama dessas é claro que não tinha outro animal a não ser Black Phillip um bode.
A Bruxa (2015) tem múltiplas camadas que falam de fanatismo, perda, morte, sofrimento, medo e tudo mais um pouco. Dá pra fazer uma Análise de explicação absurda sobre o filme. Porém, é fato que o diretor Robert Eggers soube como usar bem a imagem desses três animais.
Assim sendo, podemos perceber que A Bruxa é um filme com múltiplas linguagens. É impossível aprofundar sobre Mitos e Lendas que envolvam cada um desses animais em um único relato. Afinal, isso é conteúdo para um série do Guariento Portal. Contudo, a lebre, o bode e em menor escala o corvo tem uma certa associação com a fertilidade em religiões e mitos antigos. Mas com o advento do Cristianismo, sua conotação mais sombria atrelada a forças das trevas e a bruxaria do conceito cristão foi ganhando força. No entanto, suas raízes são bem antigas, seja na religião celta com Ostrana, que até nos dias de hoje tem um ritual próprio e sua assimilação com a Páscoa, assim como Morrígan, a morte e os corvos e o deus Pã, lascivo e apaixonado com o bode. Todos acabaram ganhando uma conotação que A Bruxa faz questão de dar uma dica.
Claro que existem outros animais que também podem ser atrelados a prática de bruxaria, como é o caso do gato, especialmente o negro. Que resiste até hoje nas celebrações de Halloween. Quem imaginaria que a lebre poderia ser associada a bruxaria por exemplo? Pois então, saiba que sim. Pelo menos e especialmente no conceito puritano que se passa o longa da Nova Inglaterra. Agora, sem dúvida, toda vez que você encontrar a imagem destes três animais em algum longa de terror que envolva ações de bruxas, provavelmente terá uma nova ideia sobre o que o diretor busca passar. É claro que isso não era necessário com Black Phillip, o bode das trevas que ganhou até fã clube. Porém, se você não percebeu nada disso, recomendamos reassistir A Bruxa em seus mínimos detalhes, você não vai se arrepender e entenderá muito mais do que simplesmente a história mais rasa deseja mostrar.