A PARTILHA DE 1947 E O NASCIMENTO DE UMA FERIDA GEOPOLÍTICA:
No jogo da política internacional, a intervenção alheia sempre foi uma máxima, e não a exceção. Os Estados Unidos hoje são o seu principal nome desde a Guerra Fria. Porém, antes do eixo do poder mudar, a França e o Reino Unido foram os responsáveis pelos mais controversos momentos do século XX. Seja do Tratado de Sykes-Picot repartindo a região da Palestina em 1916. Ou a intervenção após a nacionalização do Canal de Suez em 1956. Porém, nenhum deles é tão emblemático quanto o fim do domínio britânico no Subcontinente Indiano. Seu resultado foi a criação de dois Estados com tensas relações. A secular, embora de maioria hindu, Índia e o islâmico Paquistão. Essa partilha levou não somente a uma das fronteiras mais instáveis do planeta. Mas também ao deslocamento forçado de mais de 10 milhões de pessoas. E sem dúvida, influenciou a identidade destas duas nações.

O RAJ BRITÂNICO SE DIVIDIU EM PAQUISTÃO E ÍNDIA. E DEPOIS O BANGLADESH:
Remontando ao ano de 1947, após os eventos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o que se conhece hoje como Subcontinente Indiano era chamado de Raj Britânico. Porém, o espírito de autodeterminação dos povos se tornou um elemento importante nas relações internacionais. Isso impôs pressão aos antigos impérios coloniais. E o Reino Unido não ficou de fora desse movimento. Com uma decisão tomada às pressas pelo último vice-rei britânico, Lord Mountbatten, houve a divisão. Hindus e siques rumaram para a União da Índia, enquanto muçulmanos cruzaram para o recém-criado Domínio do Paquistão. Esse evento assolou a região em violência étnica e religiosa. As antigas províncias de Punjabi e de Bengala foram repartidas seguindo critérios de seus marajás ou da maioria de sua população. Porém, é na Região da Caxemira que as desavenças se tornaram uma fagulha para um conflito intermitente que se estende desde então.
CAXEMIRA, A TERRA ONDE A DIVISÃO CONTINUOU:
Antes de toda essa confusão, a região da Caxemira era um estado principesco. Governado por um marajá, mas um estado fantoche da Companhia das Índias Orientais e do Império Britânico. Seu último marajá, Hari Singh pensou inicialmente em transformar a região em um estado neutro independente. Da mesma forma que a Suíça se formou depois dos eventos da Revolução Francesa (1789-1799). Um estado tampão. Assim como também é o Afeganistão. Porém, na Caxemira, as regiões ocidentais se uniram ao recém-formado exército paquistanês em virtude de sua proximidade religiosa. A Caxemira até então era de maioria muçulmana, mas comandada por um marajá hindu. Vendo essa revolta, Singh acorda que a região iria integrar, na verdade, a Índia, e solicitou suprimentos e o amparo do exército indiano para conter a rebelião. Essa escolha, obviamente, irritou profundamente o Paquistão, que via a adesão como ilegítima.

DEPOIS DA PARTILHA, TRÊS GUERRAS ARRASTARAM A REGIÃO:
Desde então, os dois países travaram três guerras pela Caxemira e inúmeros confrontos armados menores. A região continua dividida. O Norte e a porção ocidental formam as províncias de Gilgt-Baluquistão e a Caxemira Livre, chamados na Índia de Caxemira dominada pelo Paquistão. Do outro lado da fronteira, o Estado de Jammu e Caxemira são um território da União, sob a tutela direta do governo central em Nova Déli. Há ainda uma pequena região, cerca de 20% do total que está sob a guarda de Pequim e faz parte do Sinquião Chinês. Seu nome é Aksai Chin. A Linha de Controle, que divide a região entre a Índia e o Paquistão, permanece uma das fronteiras mais militarizadas do mundo. Para a Índia, a Caxemira é parte integral e inviolável de seu território. Para o Paquistão, é uma terra ocupada que deveria ter feito parte de sua nação muçulmana.
A DESCOLONIZAÇÃO E O LEGADO DOS IMPÉRIOS:
A Partição da Índia não foi um conflito isolado. Na verdade, o evento faz parte de um movimento amplo de descolonização do século XX. Que não somente impactou a Ásia, mas também a África. Enquanto impérios europeus recuavam, fronteiras arbitrárias foram traçadas por potências coloniais e por Conferências, como a de Berlim (1814-1815), que geravam disputas complexas que envolviam cultura, religião e rivalidade histórica. É nesse mundo de Era dos Extremos que os videogames podem não responder, mas ajudar a compreender. Um exemplo é Victoria 3, jogo de estratégia histórica da sueca Paradox Interactive lançado em 2022 que simula esse processo. Sucessor do título de 2010, nele, o jogador pode viver o papel do Império Britânico ou das colônias como a Índia, gerenciando movimentos nacionalistas e tensões étnicas. Especialmente em sua expansão Pivot of Empire (2024). Um retrato mecânico, mas eficaz, das pressões que levaram ao caos de 1947.

URZIKSTAN E A FICÇÃO INSPIRADA NA REALIDADE:
Além dos elementos mais históricos que repercutem as mudanças após a Segunda Guerra, a modernidade também alterou a fórmula da guerra. Embora sem uma menção direta à Índia, ao Paquistão e à Caxemira, é possível tirar semelhanças estruturais com o Urzikstan de Call of Duty: Modern Warfare, de 2019 e produzido pela Infinity Ward. O país, fictício por natureza e mesmo estando no Cáucaso, foi uma escolha jurídica eficaz para evitar embargos e problemas maiores. Basta relembrar que a franquia da Activision já foi alvo de questionamentos com a problemática missão “No Russian” em Call of Duty: Modern Warfare 2 (2009). Porém, a história do jogo contém todos os elementos do conflito indo-paquistanês. Abusos militares, a luta por autodeterminação e o ciclo de radicalização. Personagens como Farah e Hadir Karim, que lideram uma resistência armada, ecoam figuras ambíguas do mundo real, sendo heróis ou terroristas.
REALISMO NUCLEAR E POLÍTICA NOS JOGOS:
Em outras palavras, Call of Duty: Modern Warfare é uma experiência que convida a refletir sobre os custos morais da guerra moderna, a complexidade das insurgências e o papel da ocupação estrangeira. Por outro lado, Victoria 3 oferece a chance de reescrever a história. Pode-se tentar evitar a Partição, fortalecer o movimento nacionalista indiano, ou até criar uma federação multirreligiosa. As possibilidades são as mais variadas. Isso promove o pensamento crítico do jogador. O que poderia ter sido feito de forma diferente nessa região? Como lidar com tensões étnicas e religiosas num império multicultural? Impossível responder a estas perguntas no mundo real. Porém, os videogames podem ser um palco para experimentar estas decisões históricas e compreender como fatores econômicos, diplomáticos e sociais moldam o destino das nações que inclusive são nuclearmente armadas. Índia e Paquistão adquiriram esse poder, respectivamente, em 1974 e 1998, tensionando ainda mais a região.

A CAXEMIRA É UM CAMPO SIMBÓLICO DE DISPUTAS:
Com certeza, a Caxemira não é apenas um território ou palco para o jornalismo de guerra e de relações internacionais. É um símbolo. Para a Índia, ela representa sua integridade territorial e secularismo. Para o Paquistão, é uma ferida aberta da Partição e uma promessa não cumprida. E para o povo caxemir, muitas vezes, representa perda, divisão e opressão. Call of Duty: Modern Warfare capta estas sensações, em especial a dor ao retratar civis em zonas de guerra. Ao mesmo tempo que se faz questionar até que ponto revoltas, violência e terrorismo se intercalam. Por sua vez, jogos como Victoria 3 ajudam a entender como decisões coloniais e diplomáticas podem transformar regiões inteiras em zonas de conflito, evidenciando que esses conflitos possuem uma raiz histórica, responsabilizando seus verdadeiros culpados. É impossível retirar a máxima culpa dos impérios coloniais. E a realeza britânica e seu parlamento fazem parte deste rol.
O QUE OS JOGOS PODEM NOS ENSINAR SOBRE O MUNDO REAL?
Claro que os videogames não possuem o poder de substituir os livros ou estudos acadêmicos. Mas podem conectar pessoas a contextos históricos e políticos por meio da experiência. Criam empatia, provocam perguntas e despertam interesse por temas complexos como descolonização, nacionalismo e identidade. Questões essas que, relegadas em um primeiro momento, são a chave para entender a dinâmica mundial de uma terra instável. Causas religiosas, filosóficas, econômicas e étnicas, na maioria das vezes, são as responsáveis por perdas e conflitos mundiais. No caso do problema indo-paquistanês, jogos como Call of Duty: Modern Warfare e Victoria 3 mostram que a história não é feita apenas de datas e tratados. Ela é extremamente volátil e também vive através das sociedades afetadas, de decisões difíceis e de narrativas eternamente disputadas que vão além da verdade, mas da construção da história. A instabilidade assim tem sua origem, suas causas e seus efeitos.
A IMPORTÂNCIA DE JOGAR COM CONSCIÊNCIA:
Mesmo assim, um aviso deve ser dado. Entender a história por meio dos jogos exige atenção crítica. Afinal, liberdades criativas são feitas desde os antigos egípcios e suas batalhas no Médio Oriente em Pharaoh: Total War (2023), ou os conflitos modernos nos Bálcãs com This War of Mine (2014). Ao jogar Call of Duty: Modern Warfare, é importante refletir sobre tanto o que é mostrado quanto o que foi deixado de fora. Ao comandar um império em Victoria 3, vale lembrar que decisões numéricas refletem impactos reais na vida de milhões. O conflito entre Índia e Paquistão, nascido da descolonização e perpetuado por nacionalismos rivais, ainda ressoa hoje. Esses jogos jamais vão resolver esse problema. Contudo, podem ser portas de entrada para bons diplomatas e líderes políticos para que, compreendendo este conflito com mais profundidade, possam sugerir novas rotas para seu desfecho.
- O acordo de Sykes-Picot foi um tratado secreto entre Reino Unido e França que dividiu em esferas de influência o Oriente Médio, já considerando a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Se tornou público após os bolcheviques assumirem o poder na Rússia.
- A Crise no Canal de Suez de 1956 teve origem com a nacionalização do Canal pelo então presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, indo contra o controle do Reino Unido na região. Em resposta, a Coroa Britânica, França e Israel declararam guerra ao Egito. Porém, por pressões políticas dos Estados Unidos e da União Soviética, uma semana depois, houve o cessar de hostilidades, e o Egito consolidou seu poder no Canal.
- Victoria 3 está disponível de forma exclusiva para o PC. Enquanto isso, Call of Duty: Modern Warfare é um soft-reboot desta subfranquia do gênero de Tiro em Primeira Pessoa. Suas plataformas contam com PlayStation 4, Xbox One e PC.
Hey, eu sou o Dan do (GameConcept) e já adianto que além de informativo, o artigo traz uma visão mais do que válida (a minha favorita falando dessa mídia, na verdade) do quanto jogos podem trazer críticas e reflexões sobre conceitos de realidade e ficção, ao colocar o jogador inserido naquela situação. Uma forma bem legal de se contar uma história. Ótimo texto, mano, bom trabalho, fiz questão de comentar diretamente aqui!
Brother, muito obrigado pelo comentário. Ajuda demais a saber que você gostou. Sempre tive a intenção de não focar em quantidade. Artigos assim demoram e por isso parece que o site está parado. Mas prefiro fazer coisas nesse estilo do que notícias simples e rápida. Acho inclusive que artigos nesse formato tem durações maiores no tempo. Já já alguma notícia pode ficar desatualizada, mas questões como essas dificilmente ficam, levam muito mais tempo para que isso ocorra.