Se você é leitor assíduo do Guariento Portal, deve ter visto nossa Review de Rebel Inc. (Android e PC), game do estúdio indie britânico Ndemic Creations, também conhecido por Plague Inc. (Switch, PC, One, PS4 e Android) e que você pode jogar até no seu celular. O game coloca o jogador na pele de um governante que deve trazer estabilidade, enquanto é claro existem rebeldes ansiosos para arrancar o seu poder. Com esse resumo, fica evidente que uma das inspirações de Rebel Inc. foi o Afeganistão. Seu impacto foi tão grande que até a Embaixada do Afeganistão em Londres elogiou o game. Entretanto, a questão é que na vida real, o que aconteceu foi game over. O governo foi derrotado e o Talibã novamente tomou o poder. Então, curioso com tudo isso? Pois então sente-se e não deixe sua irmã andar desacompanhada nesse Especial História sobre A Queda do Afeganistão.
Atenção: Como em toda nossa postagem, os avisos são essenciais. E em um Especial sobre História isso é fundamental. Falar sobre a conquista final de Cabul, a Capital do Afeganistão, pelas mãos dos rebeldes talibãs é passear por um conflito de décadas. Onde na verdade, não existem mocinhos, todo mundo tem culpa e todo mundo perde nessa história. Claro que de maneira especial as mulheres, que sequer podem estudar sob a égide desse grupo fundamentalista. No entanto, a primeira derrocada do Talibã tem tudo que o game Rebel Inc. têm; uma região instável, com vácuo de poder e que sofre de problemas que todo mundo sofre. Como é o caso da corrupção e a falta de serviços públicos por ter sido tremendamente bombardeada por aquele que leva a democracia ao redor do mundo. Sim, é óbvio que tem dedo, braço e corpo inteiro dos Estados Unidos nesta história.
Falar do Afeganistão é falar de Guerra Fria e munição americana.
Para começar esse Especial, saiba que os Estados Unidos já foram aliados do que viria a ser a raiz do Talibã. Quando ainda na Guerra Fria, longe de qualquer game e através da Operação Ciclone, Washington fez questão de armar até os dentes os mujahedins, combatentes afegãos seguidores da religião muçulmana, porém de uma forma bem rígida e fundamentalista. Tudo isso foi necessário para evitar que o Comunismo, sempre ele, viesse a se infiltrar na região da Ásia Central. Como é uma história repetida, você já deve ter visto isso ocorrer no Irã com o Xá Pahlavi e até mesmo com Saddam Hussein, o antigo ditador do Iraque. Todo esse povo, em um primeiro momento, recebia saudação e armamento dos Estados Unidos. O caldo começa a entornar quando a União Soviética cai e junto dela, o terrível, malvado e tenebroso comunismo.
Com a retirada do exército soviético entre 1988 e 1989, surge um vácuo de poder. Algo perigoso em uma região já recheada de armas para todos os lados e todas as frentes. É então que um grupo dos mujahedins, o Talibã, notadamente um movimento da etnia pashtun, uma das duas mais importantes do Afeganistão, conquistou vastas porções do território. E é claro, arregimentou seguidores com sua forma de pensamento, tanto antissoviética quanto também se provando antiocidental. A Guerra Civil Afegã durou até 1996, quando Cabul, a capital, foi oficialmente tomada e criou-se o Emirado Islâmico do Afeganistão. De 1996 até 2001, o Talibã governou o povo afegão com unhas e dentes, de tal forma que um ocidental se choca. Pena de morte para quem se converte para outra religião e a proibição de que mulheres saiam sozinha ou estudem são apenas as cerejas do bolo.
Democracia? O que é isso? É algo especial? Eu quero é vingança!
Mas isso não era especial ou interessava aos Estados Unidos ou às potências ocidentais da época. Mesmo que dentro da guarida do Talibã estivessem nomes como Osama Bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda. Pelo menos não até o ano de 2001, quando ocorreu a derrubada das Torres do World Trade Center, em Nova York. Mais precisamente em 11 de Setembro de 2001. Todo mundo que estava vivo naquele momento sabe, e se lembra exatamente onde estava quando as torres em chamas eram exibidas por todos os televisores do mundo. Rapidamente, com Bin Laden se tornando o alvo principal dos Estados Unidos – com sangue nos olhos e querendo vingança – o Talibã se tornou então um rival a ser combatido por ter ligações com o terrorista. Não era levar democracia, nunca foi. Mas simplesmente uma represália pelos Ataques de 11 de Setembro.

E é então que com todo o poderio americano e de seus aliados temos a Invasão do Afeganistão, ainda em 2001. Rápido e rasteiro, como sempre. O Talibã foi deposto e um governo “democrático” e aliado foi colocado no lugar em 2004. Contudo, células do Talibã existiam em todos os lugares do Afeganistão e em países próximos, como o Paquistão, o que exigia que os estadunidenses mantivessem uma força permanente na região. Cabia então ao governo local, depois de chegar ao poder, iniciar todos os preparativos para diminuir os problemas locais e manter sua estabilidade, algo considerado difícil, e que Rebel Inc. deixa bem claro que realmente é. Porém, tendo os Estados Unidos ao lado, não haveria problema no quesito segurança. Aos poucos, as Forças de Defesa Afegãs seriam treinadas e equipamentos doados para que, futuramente, quando os americanos deixassem o país, eles pudessem viver por si só.
O tempo passava, e as linhas inimigas se organizavam.
No entanto, esse mesmo governo parece não ter jogado Rebel Inc., ou então tomou os caminhos mais errôneos possíveis e imaginados. Primeiro que, mesmo com o apoio americano, a Defesa Afegã não conseguia destruir as células do Talibã que trabalhavam assiduamente em arregimentar ainda mais cidadãos. De maneira especial aqueles que se encontravam insatisfeitos com o poder de Cabul. Não por menos, seus primeiros sucessos sempre ocorreram em regiões rurais, onde o poder Central dificilmente chegava. Além do mais, o Afeganistão tem um terreno cheio de cadeias de montanhas, o que facilita seu uso como esconderijo quando tropas americanas e legalistas chegavam para o conflito. O tempo foi passando, e as ditas “melhorias” não apareciam. Vale lembrar que a maior parte da população afegã vive em regiões rurais, o que piorava a reputação do governo, afinal, nada in loco era feito. Mas o Talibã, pelo contrário, fazia seu trabalho.
Não demorou muito para que a corrupção fosse colocada como um problema do novo governo, e seus antigos detentores, o Talibã, faziam questão de destacar essa diferença. Assim como a promíscua relação com o Ocidente. Aos poucos, vila por vila, o Talibã ganhou força, se tornando novamente uma ameaça mesmo com o governo central auxiliado pelos Estados Unidos. Ou seja, de um lado, temos a perda de popularidade de um governo, e do outro, uma facção que ganha poder. Óbvio que não precisa ser um mestre de xadrez ou jogador de Rebel Inc. para dizer que quanto mais o tempo passava, mais o governo do Afeganistão se mantinha em praticamente uma coluna, as forças dos Estados Unidos. Sem ela, e sem ter conseguido formar uma defesa sólida, era questão de tempo para que o governo caísse caso os estadunidenses saíssem desse tabuleiro. Todo game daria este mesmo resultado.
Quando menos se esperava, o Golpe de Misericórdia veio do aliado.
E isso acontece em 2020, na cidade de Doha, capital do Catar. Uma das cidades sede inclusive da Copa do Mundo de Futebol FIFA de 2022 que foi palco de um Especial quente aqui no Guariento Portal. Retornando ao Afeganistão, com um acordo de quatro páginas assinado entre o Departamento de Estado dos Estados Unidos e o Talibã, foi decretado que o exército estadunidense ainda em solo afegão seria retirado, deixando o governo, anteriormente aliado, sozinho para cuidar de si. Alegou-se que já não era mais necessário tal gasto militar e que as vidas humanas dos soldados eram mais importantes. Pena que isso aconteceu cerca de 18 anos após a primeira invasão, em 2001. Sem ter acesso a forças internacionais para compor a sua segurança, fato é que o Afeganistão se viu em uma completa enrascada. Enquanto o Talibã fazia um jogo de xadrez conquistando peça por peça.

Agora, imagine esta situação. Você é o governante de uma região com pouca expectativa de abalar o coração de seu povo. Não há mais tempo para melhorias na educação, na saúde para que se vire essa opinião. Os soldados que guardavam parte de seu fronte desapareceram e deram adeus te deixando com uma mão na frente e outra atrás. Enquanto isso, sua capital está sendo cercada por todos os lados pelos rebeldes, loucos para tomar o poder. Nessa situação, claramente, o único gabarito possível é o fim do jogo. E de fato, se embora isso pode não acontecer num game como Rebel Inc. se você for um governante hábil, aconteceu no Afeganistão. Precisamente em 30 de Agosto de 2021, quando finalmente o Talibã entrou em Cabul, dominou o Aeroporto Internacional de Cabul e destituiu a República do Afeganistão para que ressurgisse em seu lugar o Emirado Islâmico do Afeganistão.
No fim das contas, foram dezenove anos para voltar à origem.
Com esta Nova Ordem Mundial, em termos geopolíticos, tudo retorna à estaca zero. O Afeganistão, que passou dezenove longe das mãos do Talibã, retornou para o mesmo grupo. Se o resumo da ópera era realmente levar a democracia para esta região, os Estados Unidos falharam miseravelmente. Aliás, a saída estadunidense da região é comparada ao fiasco completo que foi o Vietnã em 1973, no contexto da Guerra Fria, quando o então exército mais poderoso da Terra foi vencida pela guerrilha local, não sem antes jogar todo tipo de arma química na região, no qual os efeitos perduram até os dias de hoje. No Afeganistão, temos a mesma história. Uma invasão que se tornou mal sucedida, mesmo com a morte de Bin Laden. Afinal, o mesmo grupo que o escondeu e o ajudou agora comanda com todas as forças, e certa popularidade local, uma nação da Ásia Central.
No fim das contas deste Especial, uma simples partida de Rebel Inc. pode ser uma evidência de um pequeno trecho deste conflito que se arrastou por largos dezenove anos de existência. No entanto, é claro que ele demonstra com maior evidência que, sem trabalhar as bases, prover recursos e deter e sufocar possíveis ameaças é praticamente impossível criar uma área de estabilidade onde a instabilidade reina. A Guerra do Afeganistão tem muitas faces, todas elas com algum dedo dos Estados Unidos. E com isso, o povo afegão sofre. Sofre desde a Invasão até a instabilidade de sua região. Agora, com o controle do poder novamente nas mãos do Talibã, não há muito o que esperar de pautas humanistas. Para estas, e também para as mulheres e para todo aquele não muçulmano, é game over mesmo. Mas esse game over é pior do que perder uma partida de Rebel Inc.