No mundo da literatura dos mistérios, poucos nomes são tão famosos quanto o do escocês Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e da britânica Dame Agatha Christie (1890 – 1976). O primeiro é a mente por trás de Sherlock Holmes. Já a segunda é a responsável pela criação de Hercule Poirot, um fanfarrão extravagante que sabe como ninguém usar sua massa encefálica. Pertencendo a uma trilogia cinematográfica, a Noite das Bruxas (A Haunting in Venice em inglês) é uma adaptação livre de Halloween’s Party, de 1969. Praticamente aposentado, Poirot segue o chamado de uma amiga para desvendar o mundo dos fantasmas. Afinal, uma vidente parece saber bem mais do que a lógica pode compreender. E é no meio das gôndolas de Veneza e dos Cavalos da Praça de São Marcos que o Guariento Portal embarca na chuvosa Crítica do filme A Noite das Bruxas, da 20th Century Studios.
Em resumo, “A Noite das Bruxas” é uma boa contribuição de Kenneth Branagh para a saga de Hercule Poirot. O filme é o melhor da trilogia em capturar a essência do gênero whodunit, se beneficiando de uma escala menor de produção. Adicionar elementos de terror cria uma nova e inédita camada que casa bem com a estética do diretor, embora alguns artifícios possam ser questionáveis em certos momentos. Ao menos no quesito entretenimento a obra cumpre o que se espera dela, mostrando que o tão estimado projeto de Branagh precisa muito mais de uma história interessante do que de um elenco inchado.
Martinho Neto, em sua Crítica de A Noite das Bruxas em Cinema com Rapadura. Nota: 7.0/10.0
RÁPIDO, POIROT SE ENCONTRA COM ALGO QUE NÃO CONSEGUE ENTENDER:
Primeiramente, A Noite das Bruxas é o tipo de filme que não dorme em serviço, sabendo usar bem seus 103 minutos de duração. Comedido e aposentado em uma Veneza prestes a afundar no Adriático, assim como sua existência, Hercule Poirot (Kenneth Branagh, o Gilderoy Lockhart de Harry Potter) passa seus dias sem ser incomodado. Até que uma amiga bate a sua porta. É a romancista Ariadne Oliver (Tina Fey). O detetive é convocado para uma sessão espírita na Noite do Dia de Todos os Santos. O local é um Palazzo prestes a cair e onde os fantasmas parecem realmente existir. Obviamente isso não é racional para a mente de Poirot. Porém, o que acontece é que aquele Palazzo ainda marca o aparente suicídio de uma garota, possuída e atormentada pelas entidades da casa. Apenas com essa descrição, A Noite das Bruxas sabe embarcar nos elementos de terror.
Aqui temos o típico filme de investigação policial, o whodunit clássico. No entanto, tanto no roteiro de Michael Green quanto na direção do próprio Branagh esses elementos de suspense e terror transbordam como os canais de Veneza. O uso de uma noite de Hallloween, assim como a atmosfera do palácio assombrado, com o uso muito sábio e coeso da câmera e da fotografia trazem uma pincelada doce de mel gótico ao filme. Não espere possessões como O Exorcista (1973) ou O Exorcismo de Emily Rose (2005). Nem era a intenção. Os planos são usados com qualidade para mostrar os espaços vazios, as frestas, a falta de luminosidade. Até mesmo os fantasmas são colocados em cena de maneira correta, fazendo o espectador pensar em um mistério impossível como em Scooby-Doo na Ilha dos Zumbis (1998).
UM PALÁCIO ASSOMBRADO VIVO COM UMA ÓTIMA DIREÇÃO:
É depois de um assassinato real que os clichês clássicos de investigação se fazem presentes. Com um homicídio e algumas informações privilegiadas de um suicídio anterior, Poirot tranca a todos dentro do Palazzo. Isso até ele descobrir quem foi o culpado por tudo. Dentro desses personagens, temos alguns padrões. É o caso do médico que sofre de transtorno pós-traumático, a serviçal devota que acredita em todas as lendas da casa. Também temos o garotinho que adora contos de terror e é tão alegre quanto assistir O Menino do Pijama Listrado (2008). Além destes, não faltam os ajudantes da vidente, o ex-namorado que largou seu destino pelo dinheiro e é claro, a mãe desolada que apenas busca dar paz e escutar uma vez mais a voz de sua filha. Todos estes são coadjuvantes onde a joia vespertina é ninguém menos que Hercule Poirot.
Com um grupo de personagens mais enxuto, A Noite das Bruxas pode se dar ao luxo de apresentar com calma alguns de seus futuros antagonistas, ao mesmo tempo que o detetivo busca suas pistas. E o roteiro acerta ao colocar de maneira simples, a partir do segundo ato toda essa premissa. Como filme de investigação, o espectador deve se atentar sempre aos detalhes, e para estes, o caso pode ser desvendado bem antes do término do longa. Porém, é óbvio que A Noite das Bruxas não deixaria de ter alguns plot twist. Esses artifícios do roteiro funcionam de maneira eficaz, não trazendo algo espetacular mas sabendo como instigar o espectador. A junção da atmosfera soturna, em uma tempestade em Veneza com a falta de iluminação e o mistério com contornos sobrenaturais praticamente escorrem das mãos de forma agradável.
SOMENTE POIROT GANHA DESTAQUE, E MAIS NINGUÉM:
Dessa maneira, o minimalismo nesta adaptação faz de A Noite das Bruxas competente justamente por não querer ser inventivo ou grandiloquente, como seu antecessor, A Morte no Nilo (2022), nem tão espalhafatoso quanto Assassinato no Expresso do Oriente (2017). Ele é simplesmente um filme de investigação policial com contornos de terror. Algo como um jogo de Detetive de maneira cinematográfica. O carisma de Hercule Poirot, que parece estar mais encarnado por Branagh é cativante, mesmo sendo um personagem lógico. Assim, suas descobertas causam um sorriso ao espectador quando seu racicocínio é posto a prova, e sem nenhum suborno do roteiro, que não inventa magicamente detalhes para amarrar as arestas. Até mesmo o silêncio, as vozes fantasmagóricas e o barulho e a música trazem uma atmosfera decente. Entretanto, é claro que A Noite das Bruxas não tem a perfeição do Davi de Michelangelo.
Talvez, o principal ponto positivo de A Noite das Bruxas seja seu nêmesis, a questão de ser apenas uma adaptação de romance policial. Por mais que os clichês sejam usados corretamente, e que a estrutura de cenário consiga mesclar uma boa atmofera de suspense com pontas de terror sobrenatural, ele não é em absoluto inventivo. Nem mesmo o desfecho no terceiro ato é algo de certa forma espetacular, embora ele deixe uma dúvida óbvia entre a racionalidade e a superstição. Dessa forma, rápida é a apresentação dos personagens secundários. Embora alguns ganhem bons contornos, como a vidente Joyce Reynolds (a estrelada Michelle Yeoh), seus tempos de tela são curtos. São necessários apenas para que Poirot consiga carimbar os aspectos de cada um. Como se existisse uma lista de suspeitos, onde até mesmo sua amiga escritora também se mantém como um de seus nomes.
A NOITE DAS BRUXAS É UMA DIVERSÃO PARA UMA NOITE CHUVOSA:
No fim desta Crítica, A Noite das Bruxas ganha destaque como um passo a passo quase clássico de como um filme de investigação policial deve prosseguir. Muito bem feito aliás pelo bom uso da direção e da fotografia, que anexam a este gênero momentos de terror. Aliás, sem dúvida, é uma amostra de maturidade da direção de Branagh, que sabe exatamente o que está fazendo ao usar planos corretos. Desde os mais fechados até os mais abertos para manter sua atmosfera. Ao mesmo tempo, o diretor, que também é o personagem principal, parece estar mais confiante em viver Hercule Poirot, com seu bigode diferenciado. Assim, cada pensamento, cada olhar conferem uma camada ao personagem que por óbvio guia a narrativa. Sem ele, o Palazzo afundaria nos canais de Veneza ou seria picado por abelhas americanas.
O roteiro é rápido e sabe manter as expectativas de um bom whodunit, mesmo que ele seja apenas isso. Os personagens secundários estão presentes como uma lista de possíveis assassinos, mesmo que algumas interações, rápidas por sinal, façam com que até mesmo uma criança seja uma possível suspeita. Infelizmente, A Noite das Bruxas não tenta ser além do que esse arroz com feijão clássico, vestido é claro com uma roupagem que demonstra qualidade. Os mesmos personagens secundários poderiam ser melhor utilizados, mas são apenas colocados em tela para fazer a lista de suspeitos crescer, com exceções. Por assim dizer, a diversão de A Noite das Bruxas se encontra em ser um filme descompromissado de investigação policial. Todos os trejeitos de um detetive bonachão estão presentes. Basta treinar sua visão que você pode se surepeender ou não com um bom mistério em Veneza na Star+ e nesta Crítica.
Números
A Noite das Bruxas (2023)
A Noite das Bruxas (2023) é uma agradável surpresa na trilogia cinematográfica baseada nos romances de Agatha Christie. É o famoso arroz com feijão bem feito na direção, no roteiro e na atuação de seu protagonista. Um whodunit bem aplicado com requintes de terror e suspense de atmosfera gótica.
PRÓS
- Direção muito competente em mesclar elementos de investigação com suspense sobrenatural em suas imagens
- Kenneth Branagh está ainda mais encarnado na figura de Hercule Poirot, sabendo levar como ninguém o longa. O filme é dele.
- O roteiro é rápido, sem muitos vales e consegue prender o espectador no mistério principal e nos que vão surgindo na noite chuvosa.
- A trilha sonora junto da ambientação do cenário criam um cenário perfeito para um bom whodunit, que se amarra no desvendar final sem mágica alguma.
- Ser minimalista fez de longa adensar sua narrativa, que nos três atos do filme não deixam o espectador se entediar.
CONTRAS
- Personagens secundários não são tão bem construídos e estão presentes apenas para que a lista de suspeitos aumentem.
- Sua simplicidade não o faz inventar em absolutamente nada. Tudo que é clichê em longas de investigação policial se encontra presente neste filme.