Oscar Wilde, escritor irlandês e mente por trás de pérolas como o Retrato de Dorian Grey era perspicaz ao dizer que a vida imitava a arte. Mais até do que a arte imita a vida. Entretanto, é inevitável dizer que essa conexão pode ser de mão dupla. E a arte pode se tornar uma espécie de futuro desagradável do que a vida pode se tornar. Nessa toada, o futuro distópico promovido pela franquia de filmes Uma Noite de Crime é estarrecedor, mas não deveria ser. Segundo a premissa criada e roteirizada por James DeMonaco, para evitar o colapso econômico, os Estados Unidos criam um feriado, a Purificação ou O Expurgo, em que por doze horas, qualquer crime é permitido, incluindo assassinato. Esqueça qualquer contrato social existente, e a ordem é a participação com a benção de Deus. Pode uma sociedade como essa sobreviver a uma hipotética Noite de Crime?
Para responder a esta pergunta, é necessário farejar os argumentos que levaram os Novos Pais Fundadores da América (NPFA), o Partido fictício da franquia, a alterar a Constituição dos Estados Unidos. Conta-se no primeiro filme da franquia, Uma Noite de Crime (2013) que os Estados Unidos não estavam bem das pernas. Com taxas de desemprego elevadas e aumento da violência urbana, a economia estava à beira do colapso. Nada resolvia e os gastos com uma população empobrecida aumentava. É então que chegam ideias excepcionais, usando-se da democracia para galgar o poder. Entre essas ideias “originais”, por assim dizer, estava a criação de um feriado nacional conhecido como Expurgo. Nele, por 12 horas consecutivas, qualquer crime, inclusive assassinato seria permitido por lei. Era algo necessário, segundo a NFPA, para que o povo americano tivesse todos os outros dias do ano um perfeito sossego.
Em doze horas é possível do caos trazer a paz?
Não, você não entendeu errado. Basicamente, o que é predito em Uma Noite de Crime é que uma nação, deliberadamente, oferece aos seus cidadãos 12 horas da mais profunda liberdade, e no sentido mais pavoroso em que tudo pode ser feito. Todos os crimes possíveis e imaginados, da maneira mais sórdida possível. Isso liberaria, assim sendo, o ódio americano em um único momento, para que se acalmassem e durante todo o ano todos fossem verdadeiros cordeiros dentro do sistema de poder da NFPA. Essa era a expectativa de refundar a América sob a sua ótica, algo quase messiânico, uma vez o uso da religião e do culto a salvação em Deus. E é nessa ótica quase Hobbesiana que o homem é o lobo do homem que a Noite de Crime é baseada. Basicamente, uma legislação com características de culto e de segregação.
Claro que uma vez aceito este Contrato Social, o Estado em nada interferiria, deixando que a Seleção Natural assim fizesse a vez até o raiar do sol. O primeiro experimento foi feito com o quarto filme da franquia, A Primeira Noite de Crime (2018), em Staten Island, e adota esta teoria social da necessidade de liberar a fúria e o ódio do ser humano para que seu comportamento seja mais sociável. Já em em termos econômicos, “incrivelmente” o Expurgo funcionou e as taxas de crescimento econômico aumentaram enquanto a violência diminuía. Em teoria, esse experimento social teria funcionado na sociedade americana. Nas entrelinhas e mais destacado no segundo longa, Uma Noite de Crime: Anarquia (2014), o espectador tem ciência do motivo desse desenvolvimento; a morte deliberada e incentivada pelo governo de todos que são periféricos na sociedade. Não por menos, o primeiro teste ocorreu em uma área periférica.
Não era paz, era apenas extermínio.
A questão é simples, como os Estados Unidos gastavam rios de dinheiro com serviços públicos, havia a necessidade de diminuir esses gastos. Com problemas tradicionais da sociedade americana, como a imigração e outras pautas, havia a necessidade de que esses grupos fossem riscados do mapa. Assim, o desenvolvimento econômico estaria presente, mas dividido de maneira ainda mais infame do que o Milagre Brasileiro. Então, com a Noite de Crime, o Expurgo acontecia especialmente com os mais pobres. Sem as condições de se defenderem, eram eles os principais alvos de quem gostaria de expor todo o seu ódio por qualquer motivo. Já os mais abastados e detentores de foro privilegiado e outras primazias sobreviviam atrás de longas barras de ferro e equipamentos de segurança de última geração. Além é claro da imunidade da Noite do Expurgo. A Seleção não era natural, mas completamente artificial.
Não é incomum argumentos de recursos limitados para população em largo crescimento. Thanos é um fã de carteirinha da Teoria Malthusiana, e carece dizer que os Novos Pais Fundadores da América também o são. Entretanto, conforme as sirenes cantam a cada ano para uma nova Noite de Crime, percebe-se seu uso deliberado para o extermínio de ideias opositoras, como em 12 Horas Para Sobreviver: O Ano da Eleição (2016), o terceiro longa da franquia. Como qualquer regime autoritário, há a caça usando-se do próprio arcabouço legal para a manutenção de tudo aquilo que foi construído e a perpetuação do poder. Algo que aliás é a sina de pequenos e grandes líderes estatais, e George Orwell já sabia disso e do controle absoluto em 1984. Aqui temos a institucionalização da violência como forma de controle populacional e medida econômica e social, simples assim.
Sociedades polarizadas sempre tendem a ideias radicais.
Aliás, excelente é a ideia de DeMonaco ao colocar os Estados Unidos como o fundo de toda a criação da Noite de Crime. Nações ao redor do mundo podem até ser questionáveis, mas nenhuma é tão questionável em sua essência como a norte-americana. Não são incomuns crimes de ódio e assassinatos em massa, em um país que facilmente se compram armas em qualquer esquina. Sendo que comprar um Glock é mais fácil do que tirar uma carteira de motorista em alguns estados americanos. Engana-se quem pensa que ideias de segregação de raça e de sexualidade são tão antigas quanto o tempo. Até 1955, pessoas eram separadas entre brancos e “de cor” no estado do Alabama, por exemplo. Somente em 2013, com o caso Lawrence vs. Texas é que foi revogado a Lei da Sodomia no Estado, usada para enquadrar relações homossexuais. Percebe-se um ambiente social extremamente caótico.
Embora de forma bastante cinemática e bastante violento, no melhor estilo Manhunt, os argumentos de Uma Noite de Crime criam uma espécie de alerta. O primeiro deles é de como argumentos antiéticos e imorais ganham popularidade em períodos de instabilidade social. Afinal, deter o poder de matar o seu vizinho, um ex-namorado simplesmente por discordar de algo beira ao ridículo. Já o segundo ponto é o uso da legislação para se institucionalizar a segregação e a violência. O Expurgo da Noite de Crime é somente uma visão deturpada do que pode acontecer nas surdinas, mas que culminaria com algo que The Handmaid’s Tale, por exemplo, sabe fazer com maestria. O mesmo pode ser dito com o Expurgo. Afinal, sua criação pode levar a um estado anárquico que nem mesmo seus criadores controlariam, como visto em Uma Noite de Crime: A Fronteira (2021).