No mundo da literatura investigativa, a britânica Dame Agatha Christie (1890-1976) tem o topo do Olimpo como o título de Rainha do Crime. E, dentre tantas obras, algumas pérolas do Mar Negro se destacam, como Assassinato no Expresso Oriente, de 1934. Agora, Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express em inglês), tendo a diferença entre o título do livro e do filme, encarna a figura do detetive Hercule Poirot, que dentro de um dos mais fabulosos percursos ferroviários entre a Ásia e a Europa, deve solucionar um intrincado caso de assassinato. Muitos são os suspeitos, e praticamente todos ousam mentir. Como então solucionar essa aparente confusão deliberada? Pois então, pegue um bolinho de sobremesa, sente-se e aprecie a vista dos Cárpatos entre a Hungria e a Romênia nesta Crítica do Guariento Portal do filme Assassinato no Expresso do Oriente, da 20th Century Fox.
“O Assassinato no Expresso do Oriente” é um filme excelente tecnicamente, que conta uma história celebrada e bastante curiosa, mas que perde pontos importantes em carisma e acolhimento. […] As atuações seguem uma característica “fria” e, excetuando o próprio Kenneth, que brilha e faz rir com uma interpretação divertida, brincando com as manias e fobias de seu protagonista, todos os outros atores seguem uma cartilha um tanto pueril. […] O desafio da adaptação é sempre o calcanhar de aquiles de todo realizador e a obcecação de Branagh em espelhar simetricamente na tela o livro em que se inspira, quase que sem filtros e emulando o próprio personagem, o torna indiscutivelmente divisível. Extremamente doce para os conhecedores e quase sem gosto para os “leigos”.
Rogério Montanare, em sua Crítica de Assassinato no Expresso do Oriente em Cinema com Rapadura. Nota: 7.5/10.0
UM PASSEIO DESLUMBRANTE DE TREM, COM UM CRIME NO MEIO:
Primeiramente, Assassinato no Expresso do Oriente tem um foco surpreendente para um filme de investigação em seus cenários e na sua parte técnica. Sejam eles reais ou produzidas em computação gráfica. Nos primeiros momentos da trama, o espectador é levado para uma Jerusalém caótica antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), onde a fagulha pela disputa entre as religiões locais se mostra presente. Após esta introdução, que marca ao público os trejeitos de Hercule Poirot, o detetive protagonista, é possível ver depois o quão grande é Istambul, a antiga Constantinopla dos bizantinos, e até mesmo o percurso do Expresso do Oriente, um dos mais belos trens do Século XX, que corta praticamente toda a Europa chegando as portas da Ásia. Todas as cidades e ambientações são riquíssimas em arquitetura, em detalhes, e até mesmo o trem, onde a maior parte da narrativa ocorre, é detalhado com o luxo de seu tempo.
É maravilhoso observar o mercado de Istambul, o público em seu vai e vem. E, dentro do trem, as montanhas que o cercam, a neve que cai. Muito disso também pelo bom uso de luz e pela fotografia, a cargo de Haris Zambarloukos. Aliás, Assassinato no Expresso do Oriente tenta ser inventivo em algumas cenas, em especial com ângulos intricados, especialmente os de vista superior, que ora dão certo, ora passam a ser apenas uma firula da direção de Kenneth Branagh (o Gilderoy Lockhart de Harry Potter). Ele também é responsável pela encarnação do detetive belga Hercule Poirot e protagonista. O apuro visual do filme e sua parte técnica é evidente, fazendo a devida imersão daquele momento histórico, 1934, seja dentro de suas falas, altamente problemáticas e alvos de cancelamento no século XXI, como também o figurino e criação dos cenários. Dessa forma, existe uma agradável coesão.
UMA ENCARNARÇÃO INTERESSANTE E DIDÁTICA DE POIROT:
Do lado da atuação, interessante notar que, sendo a primeira interação de Branagh como Poirot, o irlandês consegue passar um certo charme em seu personagem. Logo no primeiro ato, é possível ver o nível de detalhe e os tiques que o personagem possui, como o seu desprestígio por números ímpares. Além do mais, sua massa encefálica parece estar anos luz a frente, presa dentro de um buraco negro que explode em razão na solução de casos. Não por menos, esse seu conhecimento o levaria a Londres, convocado para uma missão. Uma pena que no meio do caminho, a bordo do Expresso do Oriente, um assassinato aconteça e, com o apoio de seu amigo Bouc (Tom Bateman), ele mergulha completamente em buscar a resposta para aquele homicídio. Com seus 114 minutos de duração, é possível dizer que Hercule Poirot é o único motor da locomotiva deste filme.
Com as cartas na mesa, o espectador é levado para o grupo de possíveis antagonistas, no total de 13 personagens. Todos eles tão diferentes quanto a água é para o óleo. Temos americanos, uma russa, uma alemã e tantas outras nacionalidades. Ao mesmo tempo, motivos parecem não ter fim para que alguns destes elementos tenham cometido este crime. O roteiro de Michael Green é inteligente no ponto de destacar que praticamente nenhum dos passageiros parece dizer a verdade, e como bom filme de investigação policial, isso acende o alerta de descarrilhamento de qualquer razão. Afinal, quando se mente, o que se busca é enterrar a verdade como um todo. Essa névoa entre o que de fato é verdade ou mentira no que cada personagem diz faz Assassinato no Expresso do Oriente ganhar contornos mais densos, especialmente quando espectros morais e éticos são postos em dúvida.
HÁ UM CONFLITO FILOSÓFICO, MESMO QUE COM POUCAS ATUAÇÕES:
Acredite, quando as peças do tabuleiro de xadrez parecem se encaixar, o próprio espectador é posto ao lado do assassino, com suas motivações e pelo caráter de quem perdeu a vida. Esse plot twist por assim dizer, é comum nos livros de Agatha Christie. E é complexo para as telas cinematográficas. Não foi o caso de Assassinato no Expresso do Oriente. Aos poucos, o espectador acaba se tornando cúmplice até o verdadeiro desmonte da farsa promovido por um, por um par de personagem e até mesmo todos, cada um com suas intenções escusas que parecem não tão sombrias assim. Esse conflito de moralidade atinge tanto Hercule Poirot quanto o espectador, uma Última Ceia da conspiração de Da Vinci. Entretanto, Assassinato no Expresso do Oriente não é um passeio calmo pela Europa Oriental. Existem defeitos e uma falta de carvão que desgastam sua relação com o público.
A apresentação dos personagens secundários é fraca e não engata a locomotiva pelo menos até o momento do assassinato. E mesmo depois deste evento, ainda assim, os personagens estão apenas presentes para criar uma lista dos suspeitos, em um estilo tradicional de whodunit sem inovação, ou seja, apenas a busca pelo culpado. No entanto, pelo menos em suas apresentações, não há praticamente empatia alguma com todos eles. E até mesmo o vínculo criado entre o assassino e o espectador é proposto por uma ação que ocorreu a tempos atrás, e se mostra como o fio condutor central dentro do trem. O elenco conta com peças estreladas como Judi Dench e Olivia Colman, além de Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz e Johnny Deep. Mas nenhum deles tem tempo suficiente de tela. Nada é suficiente para criar vínculo, mas sim o artifício do roteiro que no momento certo se impõe.
PROBLEMAS NA CONSTRUÇÃO DAS CENAS PODE EMPACAR O TREM:
Esse mesmo argumento se encontra no livro, mas no longa funciona como um quase ex-machina resolutivo. Um outro aspecto importante, porém negativo em Assassinato no Expresso do Oriente é a técnica evolutiva da direção, o corte das cenas e até mesmo a trilha sonora. Como dito anteriormente nesta Crítica, a direção em determinados momentos cria firulas de ângulos de câmeras que não são entendíveis de se fazer, se apresentando apenas como um floreio, uma assinatura especial, sem acréscimo nenhum da imersão do espectador. Do segundo ponto, há uma evidente demora, tal como um trem, na evolução da narrativa. Tanto é que o primeiro ato é praticamente uma introdução sem nenhum vínculo aparente com o restante da narrativa. Ela é bem dirigida mas aparece de forma desproporcional em termos de duração. Por fim, a trilha não é memorável, é apenas complacente com a proposta do filme.
Dessa forma e com essa Crítica, sendo a primeira adaptação de uma trilogia cinematográfica que ainda conta com Morte no Nilo (2022) e A Noite das Bruxas (2023), Assassinato no Expresso do Oriente é uma entrada com alguns defeitos sérios, que fazem dessa viagem de dias ora um enorme encanto, ora um grande problema. De um lado, temos momentos da direção que apresentam refino de qualidade. O mesmo ocorre com a construção do cenário e a fotografia, uma das mais belas para este gênero. Viajar por áreas tão diferentes é um prazer aos olhos. Além disso, Hercule Poirot e seu bigode bem diferenciado caminham muito bem a narrativa. Seus trejeitos do personagem acabam o marcando como alguém interessante. A dualidade entre a justiça e a vingança no quadrante final do filme sem dúvida é a principal qualidade do roteito. Isso sem dúvida torna o final bastante satisfatório.
UM BELO PASSEIO PELA EUROPA COM PARADAS OBRIGATÓRIAS:
Claro, se não existissem erros de percurso, Assassinato no Expresso do Oriente seria um excelente longa metragem. Pena que a direção acaba se perdendo na avalanche com alguns cortes e na própria construção das cenas, demandando tempo onde não deveria existir. Além disso, mesmo com o cacife de cada contratação do elenco, não há tempo para se afeiçoar a ninguém. Todos estão ali apenas para compor a lista de suspeitos com uma trilha sonora que é esquecível. No fim das contas, Assassinato no Expresso do Oriente sabe como divertir como um bom suspense whodunit policial, com o adendo final satisfatório e filosófico. Caso o expectador desconsidere algumas pontas desamarradas, alguns problemas de tempo e certas contradições, é possível se divertir bastante e consumir. Assim como o garboso Chandon de dentro do trem, uma boa mídia, mas gelada demais, de investigação policial disponível na Star+ e nessa Crítica do Guariento Portal.
Números
Assassinato no Expresso do Oriente (2017)
Assassinato no Expresso do Oriente é uma leitura diferenciada do romance de Agatha Christie. Com uma exímia parte técnica, uma direção que mais acerta do que erra e uma boa interpretação para o detetive belga, o whodunit esconde algumas de suas falhas com um final bem filosófico.
PRÓS
- Apuração técnica dos cenários e dos figurinos faz do filme um dos mais elegantes de investigação policial.
- Branagh encarna um Poirot que em pouco tempo, é a luz do fim do túnel e a corda que amarra todos os eventos da história.
- Final satisfatório, com um conflito entre a justiça e a vingança muito bem colocado em uma estrutura dinâmica de narração.
- Roteiro demora, mas quando engata mantém sua consistência, mesmo que com alguns momentos relapsos.
CONTRAS
- Personagens secundários são de pedigree, mas não existe tempo de tela para que suas estrelas brilhem.
- Há uma confusão entre a estrutura das cenas e o tempo que se dá a elas. Algumas desnecessárias.
- Trilha sonora não tem o impacto apropriado para a parte técnica, sendo apenas suficiente.