Quando lançado, nos anos de 2004, Jogos Mortais (Saw em Inglês), não esperava se transformar em uma franquia de sucesso e responsável por casos de pessoas indo do cinema para o hospital. Leigh Whannell e James Wan correram pelos desertos e as costas australianas para financiar suas ideias. A Austrália não deu tantas oportunidades, até que conseguiram, em Los Angeles, nos Estados Unidos, dólares o suficiente para criar o mundo de Jigsaw. Por mais desvirtuado que o caminho da franquia tenha seguido, se lambuzando com o torture porn, é possível verificar elementos do gótico clássico e do terror sádico que até mesmo o Marquês de Sade ficaria feliz em ver nesta franquia de filmes. Aliás, essa mistura de estilos nesse jogo macabro é bem mais interessante do que simplesmente o uso do sangue escorrendo pela tela e vísceras aparecendo.
Os clássicos deixaram sua semente em Jogos Mortais:
Primeiramente, é interessante destacar que o gênero gótico não é envolto apenas por contos e histórias do século XIX. Que, dentre seus nomes primordiais estão o mundo vampírico de Conde Drácula, do irlandês de Bram Stoker ou o doutor com princípios de Deus de Frankenstein, da britânica Mary Shelley. Uma das característica que faz o gótico ser um movimento artístico peculiar é a sua capacidade de mexer com o grotesco, e com aquilo que não se parece humano. Em seus ditos clássicos, isso é visto sempre numa impressão sobrenatural. Afinal, Drácula, em seu castelo romeno é um sugador de sangue, enquanto o Monstro de Frankenstein é uma tentativa de dar vida aquilo que não poderia ter. Entretanto, Jogos Mortais reexamina essa ideia do sobrenatural ao colocar o grotesco na condição humana. E além disso, em desempenhar o aspecto de pilar de regras sociais.
Soa estranho demais destacar esse estilo como algo formador das amarras sociais. Porém, é exatamente neste aspecto que o gótico consegue se destacar ao ultrapassar essa barreira. O grotesco, o estranho é explorado quando essas amarras sociais são rompidas. Elementos como a imortalidade e a ressurreição podem existir no conceito religioso, mas no mundo concreto são fora da realidade, das regras sociais. Fica claro, assim sendo, que Jogos Mortais se insere nesse movimento ao simplesmente se desligar destas amarra. Quando Jigsaw coloca seus jogadores em momentos de desespero onde o custo pode ser sua vida, o grotesco do gótico pode ser visto tanto no contexto físico, quando no psicológico. No primeiro aspecto, praticamente todas as armadilhas do serial killer de Jogos Mortais envolvem a perda de algo do corpo humano e uma atmosfera de opressão severa aos personagens.
A arte de infligir a dor é vista com um tom messiânico por Jigsaw.
Já no ponto psicológico, Jigsaw insere o ser humano, contratualista e cheio de amarras sociais, em situações mais primitivas que o retira daquilo que, dentro outros aspectos, o destaca como ser humano. No fim das contas, e como destaca Cláudio Vescia Zanini, Doutor em Literatura em Língua Inglesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), existem mais semelhanças entre Drácula, Frankenstein, Dr. Jekyll de O Médico e o Monstro, do escocês Robert Louis Stevenson, do que diferenças. Essa desumanização, característica do gótico, também passa a ser a porta de entrada para o seu segundo contexto, o sadismo. Popularmente conhecido como o prazer de um ser humano ao infligir dor em outro, o sadismo se apresenta em Jogos Mortais de maneira óbvia não por Jigsaw, mas sim por seus asseclas, Amanda Yong (Shawnee Smith) e o Detetive Mark Hoffman (Costas Mandylor).
Dentro da mitologia de Jogos Mortais, Jigsaw, ou melhor, John Kramer (Tobin Bell) tem um tom messiânico de se apresentar como o tipo de pessoa que sabe o que é o dom da vida. Afinal, portador de um câncer incurável e com inúmeras perdas em seu histórico, ele acredita ter compreendido o significado da vida. E que muitos negligenciam esse aspecto. Diferente de um sadismo tradicional, Jigsaw não se diverte ao infligir dor em seus jogadores. O oposto por exemplo, de Pinhead na franquia Hellraiser. Para Jigsaw, é necessário que as pessoas passem por uma verdadeira epifania para compreenderem o mesmo que ele compreendeu eu seu quase leito de morte. Seu “prazer” está no momento em que com suas armadilhas, as pessoas conhecerão a verdade, que as libertarão. É nesse aspecto que John Kramer age como um sádico.
A epifania através de jogos macabros faz de Jigsaw um assassino?
O mesmo, é claro, não pode ser dito de seus peões. Com um passado sombrio e cheio de perdas, tanto Hoffman quanto Amanda perdem completamente a mão na “teologia” de Kramer. O primeiro, organizando uma armadilha impossível de sair. Enquanto a segunda, com o seu desejo inerente de que ninguém deve sobreviver aos Jogos Mortais, pois não é possível redimir de seus pecados. Nesse caso, e em especial o de Hoffman, há um sadismo mais tradicional. Entretanto, isso não exime a ficha corrida de Kramer. Como a mitologia de Jogos Mortais se alargou nos filmes produzidos, ainda assim existem momentos de extremo sadismo no antagonista. Esse é o caso do plot twist em que Kramer na verdade estava o tempo todo observando os jogadores de Jogos Mortais, e de seu jogo narrativo e manipulador contra o Policial Erick Matthews em Jogos Mortais II, de 2005, por exemplo.
Lógico que existem outros exemplos que complementam a desumanização dos personagem, o que se torna a gênese de Jogos Mortais. O tratamento como uma árbitro além da vida e da morte faz de Jigsaw praticamente um paladino acima de qualquer lei ou costume. Isso deixa aberta uma brecha para que espectadores e leitores possam se fazer uma pergunta. Até onde a tortura pode ser justificada? Mesmo que John Kramer seja um serial killer para os devidos fins e direitos de propriedade, ele se difere completamente de outros assassinos do cinema, como Ghostface, de Pânico (Scream) ou Freddy Krueger de A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street). Ele então estaria dentro dos parâmetros de um serial killer? Ele, o criador de Jogos Mortais poderia ser realmente considerado um assassino?
A deformação da humanidade e grotesco existem em Jogos Mortais.
Porém, o que encerra por uma vez essa tríade entre o gótico e o sádico dentro de Jogos Mortais é uma questão de ultrapassar a quarta parede. A franquia de filmes ganhou notoriedade por um aspecto: a curiosidade mórbida do ser humano. Jogos Mortais se tornou um exponente de um amplo grupo de filmes que envolvem o abuso da tortura. É o caso do impossível A Serbian Film: Terror Sem Limites (Srpski Film em Sérvio), de 2010. Essa curiosidade não é moderna. O ser humano possui um lado animalesco desde que fomentava no Coliseu de Roma lutas contra gladiadores. Dada as aspas comparativas, Thomas Hobbes já falava isso em seu Leviathan do Século XVII. Então, no fim das contas e após tantas armadilhas, Jogos Mortais, como franquia de filmes, é um interessante plano da deformação humana, usando assim algumas características góticas e sádicas no meio de suas imagens.