BENÇÃOS E MALDIÇÕES VIVEM LADO A LADO.
Que as terras do extremo leste guardam segredos desde a Antiguidade, isso é indubitável. Porém, é impossível não destacar que, nas produções cinematográficas, o gênero do terror ganha um carinho especial do Japão, da Tailândia e, por que não, de Taiwan. A pequena ilha asiática passou a figurar nas listas dos principais filmes de terror através de Incantation, traduzido como Marcas da Maldição, ou Zhou em chinês. Lançado em 2022 e disponível na Netflix, o espectador é levado em uma jornada com o pé em um caso real taiwanês. Dividida em dois arcos temporais, o longa conta a história de um grupo de jovens que acabam metendo o nariz onde não deviam. E pagam um preço caro, maior do que simplesmente os jumpscares da Abadia de Santa Carta. Então, repita com cuidado o cântico e embarque nesse terror que se tornou a maior bilheteria de seu país.
QUE OS DEUSES E ANJOS OS GUIEM EM SUA BUSCA SUBLIME… OU NÃO.
Primeiramente, e não há outra forma de começar sem o devido destaque para a sonoplastia de Marcas da Maldição. Algo que simplesmente arrebata o espectador. Nos primeiros segundos do longa, há a apresentação de uma espécie de canto que serve para proteção, e que permeia toda a narrativa do filme e também peça fundamental de todos os acontecimentos. Além dele, há gestos de mãos e orações que são repetidamente instigadas para o espectador. Entretanto, não é somente nesse momento que a direção de áudio brilha. O filme consegue abusar e muito do silêncio ou de sons baixos para criar uma certa agonia. Algo que no Ocidente somente aconteceu com Um Lugar Silencioso (2018). O que se forma na verdade é uma atmosfera assustadora, também com destaque para os eventos do passado, uma vez que o filme não é linear.
De outra forma, essa falta de linearidade poderia ser até um problema, um encalço de roteiro, mas que de maneira surpreendente auxilia na expectativa do filme. Marcas da Maldição tem uma história simples, mas extremamente bem trabalhada e funcional, escrita pelo diretor e por Che-Wei Chang. A jovem Lin Ronan (Hsuan-yen Tsai), seis anos antes, participava de um grupo de jovens investigadores paranormais que viajava por toda a região de Taiwan ao estilo Caçadores de Mitos. Porém, bastou um episódio em que a equipe acabou quebrando um tabu religioso, que a levou inclusive a colocar em adoção sua filha Dodo. Seis anos depois, ela se vê livre da aparente maldição e consegue reaver a criança, agora crescida. Mas a maldição continua presente em sua vida e não descansará enquanto não infernizar tanto ela quanto a criança, que começa a ver espíritos e monstros dentro de casa.
UMA HISTÓRIA SIMPLES, QUANDO BEM FEITA, É O SUFICIENTE.
Toda essa história acaba sendo vista em Marcas da Maldição de forma não linear. Ou seja, muito diferente do terror ocidental visto em A Freira 2 (2022) ou então no amadíssimo clássico O Exorcista (1973). Como há duas linhas temporais, a história de divide entre a investigação dos jovens, em um culto que a primeira vista é esquisito e isolado nas montanhas taiwanesas, e o presente. Os cortes da direção de Kevin Ko são capazes de manter, em seus quase 111 minutos, a emotividade. Aos poucos, o espectador vê uma mãe implorar, quebrando a quarta parede, para que ore junto com ela. Mas é então que quanto mais se investiga, as reais intenções desta mãe não são exatamente puras para o espectador. E a entidade Buda Mãe Dahei parece esconder segredos ainda mais profanos do que Valak poderia fazer.
Há uma carga emocional forte no filme, algo incomum em longas que versam sobre maldições e possessões. Até mesmo os do leste do globo. E muito disso cai nos ombros da protagonista, vivida por Tsai Hsuan-yen. Não temos uma família funcional interiorana como em Quando a Morte Sussurra (2023), mas sim uma mãe que se encontra desesperada para reaver, tanto física quanto espiritualmente, a vida de sua filha. Acontece que de maneira brilhante, o roteiro de Marcas da Maldição joga migalhas para preparar o terreno para o seu terceiro ato. Onde tudo praticamente desmorona com a realidade, mesmo que ela estivesse a plenas vistas, mas que não queria ser vista. O terror oriental é conhecido pelo estilo M. Night Shyamalan de plot twist, mas neste caso temos algo nível Espíritos: A Morte Está ao Seu Lado (2004) em seu encerramento.
MARCAS DA MALDIÇÃO TÊM O QUE UM CLÁSSICO DE TERROR DEVE TER:
Em termos fotográficos, Marcas da Maldição consegue aflorar sentimentos ambíguos. Usando o famoso found footage de A Médium (2021), o filme é capaz de mostrar momentos carinhosos no relacionamento entre mãe e filha, assim como tenebrosos. Em especial na investigação de um caminho secreto, de crianças sacerdotisas e do pânico de se estar em um lugar fechado. A direção, até de maneira sutil e não correndo para sustos fáceis, consegue criar uma atmosfera ímpar que a todo momento é auxiliada fortemente por sua trilha sonora. De fato, o filme pode não ser uma invenção completa na roda. Mas sem dúvida alguma, sabe como pouquíssimos do gênero utilizam suas ferramentas em escrita, técnica, direção e sonoplastia como ninguém. Inlcusive com bons efeitos práticos que causam repulsa especialmente se o espectador tem tripofobia. Na verdade, nem precisa ter esse trauma para ter o mesmo efeito nessas cenas.
Assim sendo, Marcas da Maldição acaba sendo um filme pesado que para construir toda a sua narrativa sabe usar muito bem o seu tempo. O que pode ser confundido com lentidão. Ledo engano. A estrutura dividida em dois arcos temporais sabe como ninguém mesclar presente e passado. Há um contexto filosófico de causa e consequência que lembra o Karma visto nas religiões Hindu e Budista no filme. Algo que Shaka de Virgem e Kali já conseguiram explicar. Da mesma forma, temos a questão de que você atrai o que você fala. Diante tudo isso, Marcas da Maldição acaba sendo um marco para o estilo oriental. Indo para uma outra área o filme consegue o mesmo efeito de O Mal que Nos Habita (2023). Sua atmosfera, captada pela sonoplastia, direção e atuação de personagens fazem do filme imperdível para qualquer fã do gênero.
Números
Marcas da Maldição (2022)
Nas montanhas da Ilha de Taiwan, uma equipe de cinegrafistas embarcam numa armadilha que os levam a quebrar um tabu de culto ancestral. Seis anos depois, embora a maldição pareça esquecida, ela está tão viva quanto antes no filme Marcas da Maldição, lançado em 2022 e que se tornou uma referência no gênero.
PRÓS
- A sonoplastia do filme, do cântico ao silêncio profundo, consegue arrejimentar uma atmosfera única e bastante opressora.
- A história, dividida entre duas linhas temporais não é lenta na narrativa, e nem descompensada, garantindo um exato suspense.
- O estilo found footage é bem utilizado, assim como a escuridão e a mudança da fotografia entre os momentos mais calmos e assustadores.
- A direção de Kevin Ko consegue segurar a narrativa, distribuindo momentos e cortes bastante corretos entre as linhas temporais.
- A força da protagonista, e a quebra da quarta parede, são bastante eficaz e consegue moldar o espectador com o que deve ser observado e entendido.
- Bastante impactante, a diversão do filme se encontra exatamente em sua gênese, criar uma atmosfera pensativa e opressora em um filme de maldilção.
- Embora não invente, Marcas da Maldição consegue usar tudo que tem ao seu alcance com uma qualidade impecável.