Escrever não é uma tarefa fácil. Exige disciplina e muita dedicação. Afinal, não é fácil demonstrar sentimentos ou descrever qualquer coisa com palavras. O mito da Torre de Babel já é uma demonstração clara dessa comunicação entre os homens. Por saberem um único idioma, os homens antigos decidiram criar uma torre que os levariam até Deus. Sendo assim, aproximando-se do Criador. Por outro lado, considerando que os homens queriam se elevar a condição divina, Deus altera todas as suas falas. Assim, com cada parte dos construtores sem entender o seguinte, a construção da Torre teve de ser parada. Verdade ou não, surge do Mediterrâneo a primeira pessoa que se adota como escritor na história da humanidade, chamada de Enheduana.
Aqui, leva-se em consideração não textos em que a autoria se coloca sobre a figura de alguém. Papiros egípcios mais antigos são colocados como de procedência de Toth, o Deus da Sabedoria. Obviamente, esses textos serão desconsiderados. Sendo assim, é válido conhecer o primeiro ser humano, arqueologicamente datado a construir textos e tê-los em sua autoria. E nesse caso, o cargo é de uma mulher. É Enheduana, uma princesa acadiana responsável por poesias e hinos que são conhecidos pois foram preservados em tábuas de cerâmica. Naquela época, a escritura utilizada pelo acadiano, a cuneiforme, era feita em tábuas de argila. Vale dizer que o acadiano é uma língua semítica, o mesmo que o árabe, mas isso não quer dizer que sejam parecidos.
Enheduana, a Alta Sacerdotisa de Ur, e a primeira escritora oficialmente documentada:
Enheduana era filha de Sargão I, o Grande, o primeiro homem conhecido na história a criar um império multiétnico e a dominá-lo de uma cidade. Seu nome é uma junção do termo “en”, para alta sacerdotisa, e “heduana”, um termo poético para a Lua. O que faz todo o sentido para a função que ela detinha dentro da sociedade acadiana. Enheduana foi colocada por seu próprio pai como Alta Sacerdotisa de Nana, o deus da Lua da Acádia. Contudo, seu nome também pode ter ligações com Inanna, a deusa da sensualidade e da fertilidade. Pelos textos que escreveu, entre eles os Hinos Sumérios do Templo, a segunda opção parece prosperar. Já que além destes hinos, também são de sua autoria textos como a “Deusa dos terríveis poderes” e também “Grande Senhora de Coração”.
Todas estas formas alternativas de palavras descrevem Inana, que na Babilônia seria semelhante a deusa Ishtar. Estas construções, assim como sua vida é bem documentada. Uma estátua em sua homenagem foi encontrada em Giparu, enquanto um disco de alabastro continha seu nome em Ur, capital do Império Acadiano a época. Diferente do que ocorreria na Idade Média, onde as mulheres foram colocadas em segundo plano, nas sociedades do Oriente Próximo, como o Egito, a Babilônia e na Acádia, as mulheres detinham poder. Seja ele temporal ou religioso, como o caso de Enheduana, em que detinha os dois. Como princesa, detinha prestígio na corte de seu pai, e posteriormente na de seus irmãos.
Princesa de Acádia e Sacerdotisa, a junção do poder temporal e atemporal:
Como Alta Sacerdotisa, tinha ligação com o mundo divino. Mesmo depois de exilada, retornou devido a sua aceitação na sociedade acadiana. Afinal, era comum que esposas e filhas reais fossem devidamente alfabetizadas e assim, detivessem o dom do conhecimento. Contudo, a presença de Enheduana não se limitava a cidade de Ur, capital do Império. Suas poesias, em especial os 45 hinos que compõem os escritos do Templo chegaram a cidades como Eridu, Sippar e Esnunna. Enheduana e Sargão iniciaram a tradição acadiana que perduraria por 500 anos. No caso, de que o Imperador sempre colocaria sua filha como Alta Sacerdotisa de Nana na cidade de Ur. O prefixo “en” como valoração de status também seria utilizado novamente com seus sucessores.
Exatamente por ter sido a Alta Sacerdotisa, seus poemas autorais são voltados a comunicação com os deuses acadianos. Entre eles, especialmente Inanna. Da mesma forma que Enheduana, Inanna era vista como uma mulher forte, poderosa, que sabe ser benevolente. Contudo, quando da necessidade ela também sabe provocar a destruição daqueles que não merecem. Para esta deidade, o principal escrito encontra-se em “A exaltação de Enheduanna e Inanna”. Normalmente, sua escrita era sempre em terceira pessoa, e de forma narrativa. Somente após o retorno do seu exílio, já no reinado de seu irmão Rimush, ela escreve em primeira pessoa. No fim, é interessante observar que, em eras longevas, a mulher detinha um poder muito maior até do que tem hoje. E Enheduana pode ser considerada uma das primeiras poetas e autoras da humanidade.