Existem assuntos que são capazes de causar um furor mundial. E a aba “Crimes de Guerra”, pela infelicidade das nações, é um desses assuntos. Mais ainda do que a violência explícita de Manhunt, ou do inferno de Agony. Dentre as espécies deste gênero, temos o assassinato, total ou parcial, de um grupo étnico ou nacional. A Netflix, em sua adaptação de Avatar: A Lenda de Aang, desenho animado da Nickelodeon, trouxe o Genocídio dos Nômades do Ar em sua forma crua, fato que inicia a Guerra dos Cem Anos naquele mundo. Entretanto, esse tema não é apenas virtual, e a Terra que conhecemos também tem seus próprios crimes contra a humanidade. Embora alguns sejam completamente esquecidos, como as atrocidades cometidas por um certo Rei Europeu. Ninguém menos que Leopoldo II da Bélgica, contra o que ele achou ser sua propriedade privada, a atual República Democrática do Congo.
* Atenção. Embora seja um assunto necessário, o Guariento Portal tem ciência de que mencionar “Crimes de Guerra”, “Genocídio” e “Crimes Contra a Humanidade” em um Artigo é alvo de questionamentos. Além do mais, esse tema exige moderação. Os fatos aqui narrados contam um pouco do processo predatório de Colonização onde hoje se encontra a República Democrática do Congo. Escritores como Joseph Conrad e Sir Arthur Conan Doyle usaram o ocorrido na região em suas obras e ajudaram a revelar as atrocidades do monarca belga. Se acaso se sentir mal, não termine de ler este Artigo. O Guariento Portal já falou sobre a importância do futebol na História, de Curiosidades sobre a Romênia e tem uma Review graciosa de Final Fantasy VII Remake, da Square Enix para PlayStation 5. Aproveite esses outros Artigos se assim preferir. Agora, vamos viajar para o Século XIX.
A Partilha da África é onde todo o caos começa no Continente Africano.
Primeiramente, importante destacar que, usando-se os critérios da Organização das Nações Unidas (ONU), genocídio é qualquer um dos atos tipificados na Convenção de 1948 que promova a destruição total ou parcial de um grupo étnico, nacional, racial ou religioso. O Holocausto, perpetrado pelo Regime Nazista durante os eventos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é o principal expoente. Muito pelo uso da racionalidade e da burocracia estatal para o assassinato em massa de judeus e outras minorias étnicas nos territórios ocupados pelo Terceiro Reich. Entretanto e, mesmo com certas ponderações, se o termo Holocausto é usado de maneira exclusiva para o ocorrido naquele período histórico, o termo genocídio não. Dentre as abominações cometidas, a África foi o octógono de diversas crises, em especial após a Partilha das Potências Europeias no fim do Século XIX. Uma figura se destaca, a do Rei Leopoldo II da Bélgica.
Ansioso de participar do seleto grupo de nações que buscavam dominar as demais. Ou melhor dizendo, de levar a Democracia para nações menos civilizadas, o Continente Africano foi dividido em zonas de influência. Reino Unido e França receberam as maiores fatias. E é por isso que a maior parte das nações africanas usa o inglês e o francês como idiomas oficiais até hoje. Porém, Espanha, Portugal, Itália e Alemanha entraram nessa infeliz divisão do bolo africano. Cada uma conquistando uma área de dominação, ou melhor, de influência. No fim das contas, somente a Abissínia (atual Etiópia) e a Libéria se mantiveram independentes no terceiro maior continente da Terra. A Bélgica, uma monarquia grudada em outra, os Países Baixos, não participou como Estado constituído da divisão, mas seu Rei ousou dizer que uma parte da África era sua. Somente sua.
Tal como a Nação do Fogo de Avatar, a ideia era conquistar e dominar, nada mais.
Sim, você não leu errado. Na Conferência de Berlim (1884-1885), uma vasta área da Bacia do Rio Congo, na África Central foi incluída como propriedade privada da família real belga. Não era a Bélgica a responsável pela região, mas sim a figura de Leopoldo II, que, com o aval europeu, poderia extrair e “desenvolver” a região. Teve-se então a criação do Estado Livre do Congo, que de livre nada teve, sendo o primeiro estado privado na História. Isso é tão exclusivo que nem mesmo aparece no simulador de nações Civilization VI, da 2K Games. E é bem diferente das terras feudais da Idade Média de Crusader Kings III e Europa Universalis IV, ambas da Paradox Interactive. Com esse aval, Leopoldo II teve a permissão de iniciar a exploração em um espaço já catalogado pelo monarca, o único que financiou as explorações naquela região.
Acontece que esse domínio, de nada democrático teve. Pelo contrário, podendo ser definido com uma única palavra, brutal. Com a expansão do uso da borracha no fim do Século XIX, Leopoldo II se virou para seu feudo privado. Criando uma força paramilitar chamada de Force Publique, era a partir destas pessoas que os congoleses daquela região teriam de cumprir quotas na extração de borracha. O problema era caso não cumprissem. Nesse cenário, os membros da Force Publique decepavam as mãos como punição pela não colaboração com o enriquecimento de Leopoldo II. Independente de idade ou gênero, não era incomum que crianças tivessem esse destino. A reincidência levava ao corte da outra mãos, e depois dos membros inferiores. Muitos deles sofriam tanto de inanição quanto pelos ferimentos provocados pelos colonizadores.
Os Crimes de Leopoldo II começa a aparer na mídia internacional.
Junte isso com epidemias das mais variadas doenças, como a varíola, e temos um declínio populacional que fica entre um e dez milhões de pessoas durante a existência do Estado Livre do Congo. Em um primeiro momento, tais atrocidades passaram inertes pelas potências europeias. Até que o episódio do corte das mãos foi amplamente registrado por missionários cristãos na Bacia do Congo. Com o dedo do Reino Unido, que buscava controlar não só o que já tinha na África como esta região, começou uma derradeira campanha internacional contra as atrocidades de Leopoldo II e sua gente. Isso apenas a partir de 1900, na virada do século. Ou seja, depois de de mais de uma década da instituição do Estado Livre do Congo, ocorrida na Conferência de Berlim. Enquanto isso, um sistema escravocrata em pleno século XIX vitimava os habitantes da Bacia do Congo.
Nessa campanha contra as barbáries na região do Congo, apareceram nomes famosos como Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), o escritor de Sherlock Holmes. Assim como o de Joseph Conrad (1857-1924), que escreveria seu principal romance, O Coração das Trevas. Ao se tornar o porta voz das angústias do que ocorria na região do Congo, O Coração das Trevas, mesmo sendo um romance fictício, conseguiu catapultar toda a problemática da colonização de Leopoldo II na África. Tão importante que além de ser uma referência para filmes, como Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, também é palco de DLC’s em games de estratégia, como Victoria II, da já citada Paradox Interactive. Contudo, mesmo que ambos sejam escritores famosos e de renome, nenhum deles é tão importante quanto Edmund Morel, jornalista investigativo britânico que reuniu as absurdas informações através da Associação da Reforma do Congo.
Mesmo com as riquezas conquistadas, a Bélgica se fingia de sonsa.
Mesmo com o lançamento de O Coração das Trevas, em 1902, ou a inclusão de novos nomes, como o do também escritor britânico Mark Twain nas fileiras contrárias, Leopoldo II não quis nem saber. Insuflou o assassinato de reputações de todos aqueles que, segundo ele, distorcia todas as suas reais intenções. Entretanto, a opinião pública, auxiliada pelo poderio britânico nas comunicações, transformou o Congo em um pesadelo para Leopoldo. A Bélgica, que usufruía de toda a pompa e riqueza da extração alheia, não queria se envolver. Por dois anos, a partir de 1906, os belgas se debatiam sobre a questão da retirada do poder de Leopoldo II no Congo. Isso só foi resolvido aos quarenta e cinco do segundo tempo, em 1908, quando de fato, extingue-se o Estado Livre do Congo e em seu lugar passa a existir o Congo Belga, até 1960.
Mesmo com toda a propaganda contrária, e com o poder dos nomes a seu desfavor, a historiografia, a princípio, foi benevolente com Leopoldo II. Na Bélgica, é comum encontrar homenagens ao rei empreendedor e conquistador, responsável por levar o progresso e cultura as nações bárbaras da África. Bruxelas e Antuérpia estampam em monumentos e museus imagens do monarca e de sua conquista, e de certa forma, a omissão de parte da sociedade belga. Da forma mais pejorativa possível. Sendo sempre a Bélgica representada como uma Musa inspiradora da Mitologia Grega os nativos congoleses como bárbaros oprimidos pela desconhecimento do mundo. Porém, não foi O Coração das Trevas de Joseph Conrad quem trouxe novamente para a historiografia as atrocidades de Leopoldo II e a sua revisão como personagem na Bélgica. E sim uma obra literária de nome O Fantasma do Rei Leopoldo, do escritor estadunidense Adam Hochshild.
Parece existir diferentes graus de Crimes Contra a Humanidade.
Lançado em 1998, o autor é explícito em afirmar que o que ocorreu no Estado Livre do Congo só tem um nome; genocídio. Há comparações explícitas de Leopoldo II com o ditador nazista Adolf Hitler. Assim como com o líder da União Soviética Josef Stalin, responsável por um genocídio para chamar de seu, o Holodomor. Entretanto, ainda assim, as páginas da história ocidental não dão os devidos detalhes acerca dos crimes de guerra ocorridos na África, mas dão a importância necessária para os ocorridos na Europa. Deixando o mais evidente possível, há uma aparente importância maior para crimes contra a humanidade ocorridos contra caucasianos na história do que outras etnias. Em especial quando o lado massacrado é árabe, africano ou asiático. Essa tentativa de moldar a História de acordo com a conveniência é uma tática conhecida, mas palco para um outro Artigo aqui no Guariento Portal.